terça-feira, 1 de novembro de 2022

Pássaros na boca e Sete casas vazias, de Samanta Schweblin


PÁSSAROS NA BOCA 


CONTOS


01-Irman

02-Mulheres desesperadas

03-Na estepe

04-Pássaros na boca

05-Perdendo velocidade

06-Cabeças contra o asfalto

07-Rumo à alegre civilização

08-O cavador

09-A fúria das pestes

10-Sonho de revolução

11-Matar um cão

12-A medida das coisas

13-A verdade sobre o futuro

14-A mala pesada de Benavides

15-Conservas

16-Meu irmão Walter

17-Papai Noel dorme em casa

18-Debaixo da terra




SETE CASAS VAZIAS 


01-Nada disso tudo

02-Meus pais e meus filhos

03-Acontece sempre nesta casa

04-A respiração cavernosa

05-Quarenta centímetros quadrados

06-Um homem sem sorte

07-Sair





SAMANTA SCHWEBLIN




quinta-feira, 20 de outubro de 2022

JACINTA ESCUDOS


Jacinta Escudos, nascida em San Salvador, é uma escritora cuja obra inclui romances, contos, poesia, não-ficção criativa e crônicas jornalísticas publicadas em jornais da América Central como La Nación (Costa Rica), La Prensa Gráfica (El Salvador) e El Nuevo Diario (Nicarágua). Embora ela escreva principalmente em espanhol, ela é fluente em inglês, alemão e francês, tendo trabalhado como tradutora por vários anos. Ela viajou extensivamente e viveu em vários países da América Central e na Europa. As pluralidades dessas fusões culturais e geográficas se manifestam em sua produção literária e pensamento intelectual. Seu romance, A-B-Sudario (Alfaguara, 2003), recebeu o Prêmio Centroamericano de Ficção Mario Monteforte Toledo (Prêmio Centroamericano de Novela Mario Monteforte Toledo). Ela também recebeu residências de La Maison des Écrivains Étrangers et des Traducteurs em Saint-Nazaire, França e Heinrich Böll Haus em Langenbroich, Alemanha.

Embora seja um autor prolífico com muitas publicações, a maioria da obra de Escudos permanece inédita. Apesar dos meios frequentemente limitados de circulação literária na América Central, alguns dos trabalhos inéditos de Escudos foram reconhecidos. Em 2002, por exemplo, Escudos ganhou um concurso nacional em El Salvador, o Décimo Concurso Literário Anual de Ahuachapán (Décimos Juegos Florales de Ahuachapán) por seu livro Crónicas para sentimentales.

A voz narrativa de Escudos se envolve com formas e técnicas experimentais. Essa experimentação é intencional, que estrutura e situa seu trabalho pela abertura de possibilidades em relação à individualidade e ao espaço. Essa voz narrativa e sua relação com outros mapas literários é demonstrada na atual participação de Escudos na blogosfera. Seu blog oficial, Jacintario, é uma mídia atualizada regularmente – uma extensão da escrita de Escudos que funciona como uma forma de expressão diária onde a voz e o conteúdo do autor variam. Como revista cultural online, Jacintario contribui para a blogosfera não apenas por ser uma produção de uma eminente figura literária, mas pelo imediatismo e acesso que o blog oferece em relação a um gênero em formação.









PUBLICAÇÕES

Maletas perdidas (crónicas de viaje), libro electrónico (autopublicación), San Salvador, 2018.

Maletas perdidas (crónicas de viaje), Los Sin Pisto, San Salvador, 2018.

El asesino melancólico (novela), Alfaguara, México, 2015.

-Crónicas para sentimentales (cuentos), F&G Editores, Ciudad de Guatemala, 2010.

El Diablo sabe mi nombre (cuentos), Uruk Editores, San José, Costa Rica, 2008.

A-B-Sudario (novela), Premio Centroamericano de Novela “Mario Monteforte Toledo” 2002, Alfaguara, Guatemala, 2003.

Felicidad doméstica y otras cosas aterradoras (cuentos y crónicas), Editorial X, Guatemala, 2002.

El desencanto (novela), Dirección de Publicaciones e Impresos, San Salvador, El Salvador, 2001.

Cuentos sucios (cuentos), Dirección de Publicaciones e Impresos, San Salvador, El Salvador, 1997.

Contra-corriente (cuentos), UCA Editores, San Salvador, El Salvador, 1993.

Apuntes de una historia de amor que no fue (novela corta), UCA Editores, San Salvador, El Salvador, 1987.



HORROR, TEU NOME É MULHER (Carlos Castelo sobre literatura feminina fantástica na América latina)


 

Horror, o teu nome é mulher

POR CARLOS CASTELO

14/10/2022, 08h00

Mais uma área onde as mulheres brilham.

(Rawpixel)

Desde a mais tenra idade tenho uma queda pelas narrativas de horror. Comecei assistindo escondido, em companhia de minha babá, a série Além da Imaginação. Aquilo, em meados dos anos 1960, era algo perturbador até para adultos mais sensíveis, quanto mais para um molecote frágil dos pulmões feito eu.

Ao ser flagrado por minha avó vendo um episódio sobre rapto de humanos por alienígenas, fui obrigado a pegar mais leve. O máximo de adrenalina permitida era acompanhar Combate, estrelado por Vic Morrow – o memorável sargento Chip Saunders. Adorava as partes em que os ianques, a seu comando, detonavam os nazis à base de metrancas, granadas e baionetas.


A curtição, entretanto, não duraria muito. Logo estava de olhos fixos, naqueles horários em que os familiares dormiam, nos Drácula, de Vincent Price, e nos Frankenstein, de Boris Karloff. Todos na Sessão Coruja, da Mamãe Globo.

Foram tantos os longas que acabei enjoando o gênero por um bom tempo. Na sequência, porém, optei por conhecer as obras macabras da Literatura. Frequentei as páginas de Poe, Lovecraft, Bierce, Hoffmann, Machen e os incluídos na Antologia da Literatura Fantástica, encabeçada por Jorge Luis Borges.

Com a chegada dos streamings voltei a me interessar por filmes e séries amedrontadoras. Só que, para achar um grão de trigo em meio ao joio de ruindade, é necessária uma tremenda garimpagem. Quase tudo é sem noção e, em especial, sem qualquer verossimilhança. Basta ver as notas do IMDb para thriller e horror. Se achar algo acima de 6.5, você está diante de um bilhete premiado.

Não se pode afirmar o mesmo da literatura fantástica da contemporaneidade. Notadamente, a que está sendo gestada por certas autoras latino-americanas. São elas: Samanta Schweblin, Giovanna Rivero, Mariana Enríquez, Mónica Ojeda, María Fernanda Ampuero, Fernanda Melchor, Pilar Quintana, Dolores Reyes, Liliana Colanzi e Jacinta Escudos.

Todas, menos a salvadorenha Escudos e a boliviana Colanzi, já estão com livros lançados no Brasil.

O que as une é um modo particular de expressar o esdrúxulo. O que vem primeiro não é um horrendo episódio sobrenatural, mas a hedionda realidade de seus países. A decadência de bairros inteiros numa capital federal, tráfico de pessoas, rinhas de galo, escolas para garotas da elite onde estas praticam atos sórdidos umas contra as outras.

Outra similaridade é a mirada feminina em relação ao horripilante. Muitos se perguntam como tantas escritoras do nosso continente surgiram, num tempo relativamente curto, produzindo histórias tão cruas e atrozes?’

Em entrevista ao jornalista Rodrigo Casarin, Samanta Schweblin deu uma boa pista:

“Viemos todos de países latino-americanos que foram e seguem sendo sistematicamente violentados pelas políticas externas e internas, pelas maneiras como nossas histórias têm sido manipuladas, fomos e seguimos sendo saqueados por mais de 500 anos. E o pior é que normalizamos grande parte disso tudo. Do que mais escreveríamos senão a partir do insólito e do horror?”.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

TODA PROSA



Narrativas abordam temáticas urbanas e problemas existenciais.

Márcia Denser desenvolve sua maturidade literária


ROGÉRIO EDUARDO ALVES

FREE-LANCE PARA A FOLHA


Antes ela gostava de provocar com um "venham me pegar". Mulher emancipada, entrou para as antologias como Diana Marini, a levada, a safada, mas ingênua personagem dos anos 80.

Hoje reaparece em "Toda Prosa" como Júlia Zemmel, uma mulher mais comedida, séria, que pensa antes de agir e sabe rir de si mesma. Esta é a personagem criada pela escritora paulista Márcia Denser, 45, para esses anos 90 e início de século.

Aos 25 anos de carreira, após viver sua fase "amadora, quando nos apaixonávamos pela causa literária", a maturidade chega: "Está na hora de eu saber me nomear. Escritor não tem impunidade", explica a autora sobre o motivo de incluir na reunião de textos inéditos e dispersos uma apresentação em que se analisa criticamente.

"Atingida a maturidade literária, me confesso uma escritora cult de linhagem clariceana, cortazariana, faulkneriana e por aí vai", escreve.

A racionalidade crítica acompanha a criação de Denser já faz bastante tempo. "É importante para o escritor olhar o outro lado da criação. Gosto de saber o que fiz, por que fiz. Sem surpresa depois. Esse negócio de não saber é para quando somos jovens. Com a maturidade intelectual e cultural adquire-se uma visão crítica. Crítica que sempre vem a posteriori."

Embora a passagem de Diana para Júlia caracterize a profundidade reflexiva deste "Toda Prosa", primeiro livro solo desde 92, a personagem principal é mesmo a "prosa poética". "Retorno a minhas manias, como quem retorna a locais para rezar", explica Denser, lembrando da característica repetitiva da poesia.

Traduzida em diversos idiomas, suas narrativas giram ao redor de temáticas urbanas e problemas existenciais contemporâneos. "São minhas obsessões", diz, citando o escritor argentino Jorge Luis Borges.

Em "Toda Prosa", o duplo "desejo e pó", tomado longinquamente ao latino Horácio, como que costura muitos dos contos e novelas do volume. A raiz poética se instala pela recorrência dessa idéia, que vai sendo vista de ângulos diferentes.

Ao todo são sete contos e duas novelas. Entre os contos, há os inéditos "Cometa Austin", "Trade Lights", "Memorial de Álvaro Gardel" e "O Último Tango em Jacobina" (publicado em alemão e inglês). Entre as novelas, "Exercícios para o Pecado", narrativa do final dos anos 80 perdida com a morte do editor Ênio da Silveira.

"Um bom conto se escreve em quatro meses", diz a meticulosa escritora. Mas tanta técnica não condiz com seus arroubos poéticos confessados.

"Preciso ficar tomada. O "Memorial de Álvaro Gardel" escrevi durante a agonia de meu pai, antes de ele morrer. Fechei o caderno escrito a mão e não consegui lê-lo durante dois anos. Quando fui olhar, o conto já estava pronto. Foi só dar a forma final."

O mesmo aconteceu com "Relatório Final", que está em "Diana Caçadora" (86): "Escrevi em seis horas, nunca mudei uma vírgula. Escrevo sob emoção intensa, para salvar minha vida, como se exorcizando um demônio, um íncubo, um súcubo. Isso num primeiro momento e para a maioria dos textos, não para todos".

Agora a escritora prepara uma coletânea das crônicas publicadas na "Folha da Tarde" entre 1985 e 1987 e vai burilando uma novela, "Sagrados Laços Frouxos". "Mas os trabalhos não estão maduros e não tenho pressa", completa.



Texto Anterior: Resenha da Semana - Bernardo Carvalho: Desforra

Próximo Texto: "O Imaginário Cotidiano": Scliar flagra o dia-a-dia pela ficção

sábado, 8 de janeiro de 2022

Sobre o jeitinho

No brasil se configurou, desde há muito tempo, a cultura do tosco, do rolo, da mutreta. Há certo asco nas coisas feitas da maneira correta, bem pensadas, planejadas. Aquele espírito aventureiro que Sérgio Buarque via em nós como herança da colonização lusitana foi se elevando para patamares cada vez maiores. Entre ladrilhadores (o pensamento racional, fruto de planejamento) e semeadores (o espírito aventureiro, aquele que deixa as coisas irem acontecendo pra ver onde vão parar), semeamos cada vez mais aquilo que é extremamente informal. Claro, afinal, fazer tudo na base do rolo é mais rápido e mais barato do que fazer as coisas como devem ser feitas. Desde motoristas entrarem direito em uma rotatória até a fiscalização de barragens, tudo é na ordem do: "se ninguém ver, se for mais barato, se der para dar um jeito, vou lá e faço". Tudo à revelia da lei, do bom senso, da razão e da segurança.
É barragem que se rompe porque os órgãos públicos não fiscalizam (fiscalizam, né...mas, tem aquele dado por fora), é avião de famosa que bate em torre de alta tensão em local irregular, são passeios turísticos que, sem nenhuma estrutura racional, colocam turistas em risco, são automóveis vendidos "pelados", sem nenhum item de segurança (o meu corsa, por exemplo, não tem nenhum airbag. Acho que isso não acontece em nenhum outro lugar do mundo), é a lógica da milícia, do despachante, do juiz que condena sem prova, do deixa que eu faço um rolo ali, que elegeu um presidente da república que é a epítome do rolo, do negocinho fajuto, da molhada de mão, da revelia à lei, do "vai custar muito caro, nem faz", do "meu jeito é melhor porque eu acho que é". Cordialidade radicalizada. O brasil, em cada aspecto, é regido pelo tosco, pelo rolo, pelo "assim é mais fácil e mais barato", do empreendedor que oferece sempre o pior (porque mais barato) pelo mais caro, que mata florestas e populações inteiras, que causa acidentes dos mais imbecis, que submete à violência e à morte sua população, que sempre contorna a coisa certa a se fazer. Do comércio da esquina à presidência da república, a regra é o tosco, o rolo, o fácil. Mesmo que essa regra nos mate há centenas de anos, essa é a regra que mais amamos.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Sobre Victor Heringer

O rosto delicado e os olhos verdes do menino do rio se fecharam em 2018. Elogiado pela crítica por seus dois livros Glória, e o último, O Amor dos Homens Avulsos, a pequena e sustante obra de Victor Heringer foi reimpressa e esgotou rápido após a sua morte precoce. Nascido em 1989 e crescido naquelas últimas décadas pré-internet, ele retratou os últimos suspiros de um mundo analógico com todas as suas delícias.

Parte deste retrato se encontra agora em Vida Desinteressante, reunião de crônicas publicadas entre 2014 e 2017 na revista Pessoa. Vê-se no pequeno recorte de tempo um Victor Heringer se equilibrando entre poeta mundano e anti-cronista. Convidado por Carlos Henrique Schoroeder para ocupar um espaço quinzenal na revista virtual, Heringer é um cronista confessadamente avoado, que, como diria Antônio Cândido em sua A Vida ao Rés do Chão: “Pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas.”. A beleza da vida, na prosa de Heringer, não é necessariamente o que é esteticamente belo.

Ele retrata um gambá que se equilibra em fios telefônicos com a mesma grandeza de um passarinho, quiçá uma borboleta amarela. Em O Gamba e o homem, Victor Heringer traz um episódio serendipitoso, em que o bicho, na corda bamba, parece estar muito mais próximo do homem do que se é esperado em matéria de gambá. Um animalzinho particularmente desprezado pela literatura, seja por seu aspecto de roedor ou pelo odor malcheiroso, o gambá de Heringer não é um Pepé Le Pew. É um perfeito equilibrista repleto de imperfeições.

A graça com o gambá está no jogo sofisticado de trabalho com a imagem do animal fedorento. Quando o autor diz que o gambá tem seu par no mundo dos homens, ele não quer dizer que existe gente fedida – embora fale isso em dados momentos –, mas que o homem, como perfeito equilibrista, luta para sobreviver e se encaixar em determinados ambientes. A marca de Heringer é justamente o lirismo acompanhado com boas doses de uma fina melancolia destilada em personagens curiosos, como nas crônicas A Mulher mais triste do mundo e Os Tristes.

Mas antes de chegar aos personagens, vale cá transcrever um excerto que representa o espírito “Heringeriano”, em O que sei das flores o próprio autor explica o tipo de cronista que é: “Não sou o tipo de cronista que senta no bar à tarde e adivinha as estações pelas roupas das moças que passam. Sei que é primavera porque olhei no calendário. Ando de cabeça baixa, quase sempre apressado, mal noto as flores caindo das arvores, às vezes no meu cabelo. As borboletas têm voado direto na minha cara com frequência, mas isso elas fazem o ano inteiro. Deve haver algo no meu rosto que as convida ao choque.”

melancolia domina seus versos e é um espírito que se mantém ao longo do livro. Mas não é um sentimento de todo ruim, pelo contrário. Escritores como Clarice Lispector, que publicamente admitiu não ser cronista, e Caio Fernando Abreu, que nos anos 1980 escreveu crônicas no Caderno 2, também demonstram natural tino para uma prosa em que a vida interior domina, expondo as alegrias e tristezas. O pessimismo, naturalmente, é um derivado entre esses dois estados e é um manancial de inspiração.

Vida Desinteressante lembra muito Pequenas Epifanias, de Caio Fernando Abreu. É interessante pensar nos dois livros como recortes de dois jovens forasteiros em uma São Paulo fervilhante, mesmo que em gerações diferentes. A solidão, tema presente na obra de Caio, está bem representada nas crônicas de Victor Heringer. Como em O Paulistano não existe: “Na noite de 31 de dezembro do ano passado, eu já estava instalado em São Paulo, e olhava o horizonte predial da Pauliceia. [...] Eu, sentado na varanda, os pés apoiados na máquina de lavar e o cotovelo no tanque, olhava. Luzinhas: janelas: um oceano de janelas com 11 milhões de gente dentro.”.

A solidão é algo reverenciado por escritores. Uma condição imposta muitas vezes pelo método da escrita, que exige silêncio e concentração, o ofício do cronista já exige o contrário, a interação, a observação. Victor Heringer flanava por São Paulo, pelo seu Rio de Janeiro e foi até Mumbai, cidade em que registrou observações em sua coluna, Milímetros, chegando até explicar para indianos o que é a tal da macumba.

Em Vida Desinteressante: Uma retrospectiva ele dá ao leitor suas anotações feitas desde que se mudou para São Paulo. Heringer era adepto das cadernetas de anotação, método essencial para o processo criativo de muitos escribas. Em seu romance O Amor dos Homens Avulsos, ele retoma o tema, colocando na boca de seu protagonista o seguinte desejo: “Quando eu morrer, sei que alguém vai entrar aqui e enfiar tudo o que é meu numa caixa de papelão, que vai acabar numa caçamba dessas. Espero que alguém a encontre, porque dentro vão estar meus cadernos [...]; minhas coisas têm alguma memória...”.

Sendo a crônica um terreno fértil entre ficção e realidade, a escrita da pequena prosa depende muito da memória e suas artimanhas. Em A Mulher mais triste do mundo, Victor Heringer traz à tona uma personagem avulsa ao seu entorno: uma faxineira que usava tênis rosa-choque. Ele a descreve como uma criatura resignada e turva, embora use calçados berrantes, limpa o banheiro de um bar, um dos cenários degradantes que o autor apresenta em suas crônicas.

A predileção de Heringer pelo degradante, pela sujeira, que o dramaturgo Antônio Abujamra dizia preferir em suas peças, é uma escolha que vai na contramão da crônica brasileira. Pensamos na prosa de Rubem Braga ou Paulo Mendes Campos com o conforto de uma Ipanema linda e limpa, com suas beldades passando pelo calçadão, as cores vibrantes e um ar de bossa-nova. Victor Heringer traz os renegados, desde transeuntes em situação de rua, idosos já caducos discutindo na rodoviária do Tietê, a usuários de drogas da região central.

É a vida como ela é, das vantagens de ser escritor, uma das é se refugiar no ofício, como se fosse vestir uma capa impermeável. Em Viver de Literatura, ele se rebela com a realidade: “Eu não sou lá muito otimista, não sei não. Em alguns livros eu gostaria de viver, em outros passar férias”. Da coletânea de textos sobre o Rio reunida por Bandeira e Drummond aos dois livros que ele nunca esqueceu, mas não lembra direito, o autor é certeiro quando diz que “quem raios quereria viver no Kafka? Já vivemos no Kafka.”.

Em Os livros que carrego comigo, o autor faz referência ao poeta Drummond, que escreveu Tarde de Maio, um dos versos mais lembrados de sua obra. “A velha pergunta se é melhor ter amado e perdido do que nunca ter amado é irrespondível: quem amou nunca mais voltará à pureza medonha de nunca ter amado. Por isso, sou obrigado a carregar certos livros comigo, ‘como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos’.”. Na seleta de crônicas, Heringer elege os livros como tema de algumas, ao relatar o valor essencial de certas obras em sua vida, com ênfase especial a Manuel Bandeira e o próprio Drummond.

Os sebos aparecem como verdadeiros retiros espirituais. Há paz dentro deles. Victor Heringer cultivou boas lembranças em algumas dessas livrarias, lembra isso quando escreve sobre o sebo de Nova Friburgo, “cuja dona, uma senhora de meia idade, parecia a Maria Bethânia, se ela fosse irmã do Gil.”. Em São Paulo, ele revela ser um frequentador assíduo desses estabelecimentos, e traz a conclusão de que “como baratas, os sebos vão sobreviver ao colapso da civilização.”

Ao trafegar entre popular e erudito, Victor Heringer assume o olhar de transeunte e passante, onde quer que esteja. Pelos países da América Latina ou São Paulo, ele busca incessantemente compreender a si, e compreende não pertencer totalmente a lugar algum. Mesmo no Rio de Janeiro, sua cidade do coração, ele em dado momento já não mais se identifica, tamanhas as mudanças do tempo ali. Gentrificação, outros ares, ele relembra a rapaziada dos saraus tocados pelo poeta Chacal ao escritor Ismar Tirelli Neto, que inaugurou o adjetivo “Ismar”.

A literatura sempre o cercou, nas amizades com poetas como Mariano Marovatto e Matilde Campilho, mesmo no trabalho esmerado que fazia como pesquisador de literatura brasileira, Victor Heringer certa vez escreveu sobre os romancistas alemães, com humor e acidez característicos: “A gente nasce com um tempo curtíssimo para tentar compreender um universo que tem um tempo de sobra”. A morte também é um tema que está presente em toda a sua obra. Seja nos romances, como nas crônicas, Victor Heringer sinalizava que o fim estava próximo.

Não significava que se derramasse em prantos, ou estivesse para romancista alemão (mesmo seu sobrenome ajudando para tal epíteto). Como cronista, ele descreve em O muro contra a morte um passeio pelos cemitérios da zona oeste de São Paulo, no trajeto entre casa e trabalho. Não perde tempo em jogar a batata quente para o leitor, como um bom cronista faz: “Leio esse mandamento todo dia de manhã: acordamorto, acordamorto, acordamôr; acorda, amor; acorda, morto; acorda morto. Gosto porque é um chamamento à ressurreição e gosto porque, sem a vírgula, parece estar falando não com os mortos, mas com os passantes, os que espiam rapidamente pela janela do ônibus a caminho do trabalho: Você acorda morto, Você está acordado, mas não está vivo. Gosto dessa involuntária maldição ao trabalho sem alegria, trampo de mundo caduco, serviço. Acorda, amor. Vence a morte.” Serviço

Victor Heringer

264 páginas

sábado, 5 de janeiro de 2019

Duas Narrativas Fantásticas Dostoievski




Leitura do dia 4.1.2019, as duas novelas que compões este livro da editora 34. Designadas pelo próprio autor como “narrativas fantásticas”, as duas novelas aqui reunidas foram publicadas pela primeira vez nas páginas do Diário de um escritor, publicação mensal redigida por Dostoiévski entre 1876 e 1881. 

Em ambas aqueles enormes monólogos nos quais dois narradores masculinos dilaceram-se. 

O primeiro [A dócil] por amor, pela incapacidade de entender o porque do suicídio da sua "dócil" esposa de 17 anos (ele, um quarentão sovina e bruto proprietário de casa de penhor, ex-soldado desonrado por covardia). Infeliz desde a orfandade, quando enviada para casa de duas tias que a exploram/humilham e a pretendem vender a um vizinho, ela busca "libertar-se" casando com o narrador que conhecera a penhorar seus míseros bens. Incapaz de delicadezas, ambos vão se afastando, principalmente por que ele a deseja mais submissa do que ela se revela, domar seu caráter torna uma obsessão, o que redonda num ciúme. Sabe então por uma tia que ela encontrar um amante que é seu ex-companheiro de quartel, testemunha de sua "covardia". Escondido atrás de uma porta, ele a vê zombar das cantadas do sujeito, rechaçando-o, ainda assim suspeita dela e compra-lhe uma cama e passam a dormir separados. Ela mergulha num adoecimento, ele então teme perde-la, traz médico, pretende vender seu negócio e viajar com ela. Explode numa locura emocional, se lançando aos pés dela que mais se angustia. Por fim, no dia da partida, ela apanha um "ícone religioso que levara para penhorar" e ela se joga da janela, suicidando-se diante da empregada, sem qualquer razão. Ele especula se foi por sua fraqueza, pois ele confessara-lhe depois ter sido realmente um covarde (devoto ele tia aberto a alma para ela como um possesso e beijado-lhe os pés) ou por que antes, quando ela descobrira a arma que pretendia mata-la, ela a apontara na sua cabeça enquanto ele fingia dormir. Mas não há respostas. Certamente essa narrativa serviu de inspiração ao São Bernardo, de Graciliano Ramos. 

A segunda narrativa [O sonho de um homem ridículo] é de teor religioso, um cristianismo que lembra o paganismo de um Alberto Caeiro. Um homem repleto de angustia existencial, achando-se em desconformidade com o mundo, e indiferente a dor e a existência de todos os homens, cogita se matar. Compra para isso uma arma, contudo, na noite que faria isso é abordado na rua por uma criança em desespero que pede socorro em desespero pela mãe, ela a afasta com truculência, e já no seu quarto de hotel (onde vizinho de quarto é um capitão militar decadente que faz sessões de birita e carteado e apavora a todos os demais inquilinos) se encontra adormecido, ele prepara-se para dar um tiro na cabeça. Ele, entretanto, sem entender por quê, adormece e tem um sonho em que está num planeta semelhante ao Éden, onde todos são virtuosos e bons, lá ele tem uma existência perfeita, totalmente integrado é amado e ama a todos seus habitantes. Essa "eternidade" é, finalmente, conspurcada por sua própria malícia, contamina-os com a mentira, depois com a desconfiança, orgulho, luxúria, ira, vaidade etc, até o primeiro assassinato. Isso é pretexto para Dostoievski refletir que já estamos no paraíso, mas é o homem que o destrói, em grande parte por seu racionalismo, seu distanciamento da vida espontânea harmonizada com a natureza e com os animais. Ele se torna louco neste planeta, e quando vai se matar, desperta no quarto de hotel transformado. Então se torna um pregador, lembra-se da "culpa" do abandono da menina, e tenta se redimir anunciando sua "visão" do paraíso (há algo de Dante nisto, certamente), sendo visto por todos como um fantasioso, tresloucado, um homem ridículo justamente por pregar o "amar uns aos outros" (máxima que ele toma como perfeita e resposta para tudo). É o misticismo epifânico de Dostoievski, entre o ideais "comunistas" anti-messiânico, mas do qual ele se faz profeta, anunciando o viver com simplicidade abdicando ao racionalismo, a ciência, ao pensamento ordenador que afasta o homem da natureza e do que existe concretamente.. 


Os filhotes, de Mario Vargas Llosa (tradução de Sérgio Molina)


Lançado pela Cia das Letras em 1999, esta edição circunscreve-se a "Os filhotes" e traz um prefácio com alguns pontos interessantes sobre essa novela, prefácio esse ausente  edição da Alfagara. O longo prefácio sem título é de José Miguel Oviedo e segue a ele uma "Introdução à primeira edição" feita por Carlos Barral (1967). O que há de mais interessante no texto de Oviedo é o trecho em que disserta sobre a linguagem de "Os filhotes", resolvi escanear e acrescentar abaixo, somente este trecho, pois achei a análise geral pobre, com exceção deste fragmento.




Os chefes/Os filhotes (Los jefes/Los cachorros), de Mario Vargas Llosa


WIKI: Esta novela, escrita em 1965-66, é considerada por muitos a pequena obra-prima de Vargas Llosa. Nas páginas do pequeno livro, narra-se a trajetória de uma turma de rapazes da classe média limenha, desde a pré-adolescência até o limiar da meia-idade. Com ousadia e destreza, o escritor peruano monta o retrato corrosivo de uma sociedade que, sob o verniz da liberalização dos costumes, cultiva o pior do machismo e do conformismo tradicionais.

Segundo a CIA DAS LETRAS: "Em um volume único, a Alfaguara reúne dois livros fundamentais na obra de Vargas Llosa: Os chefes, seu primeiro livro, publicado em 1959, reúne seis contos sobre desafios, provações e morte; Os filhotes, de 1967, é uma novela de impacto sobre o difícil amadurecimento de garotos na Lima dos anos 1950. São textos envolventes, que mostram toda a força narrativa de um dos maiores prosadores da atualidade.

Em relatos impactantes, ele tece a difícil vida de jovens na Lima dos anos 1950: as disputas no colégio militar - que mais tarde voltariam a ser abordadas no clássico romance A cidade e os cachorros -, os traumas que mudam para sempre o destino de uma criança e um duelo de navalhas que só poderá terminar de forma trágica.

Vargas Llosa narra também a violência no campo, onde a justiça é feita de forma sumária e os homens não podem confiar em ninguém. Mario Vargas Llosa é um mestre na arte de contar histórias, e os textos reunidos nesta edição - seu livro de estreia e uma novela - mostram como ele se tornou um dos mais proeminentes escritores da atualidade. A reunião de Os chefes e Os filhotes apresenta um mundo vibrante e imprevisível, poucas vezes visto na literatura.




Ficha Técnica
Título original: LOS JEFES / LOS CACHORROS
Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman
Capa: Raul Fernandes
Páginas: 136



segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Museu Nacional do Rio de Janeiro


Ontem 2.9.2018 - O Museu Nacional do Rio de Janeiro ardeu inteiro até os escombros. Neste país uma derrota a cada dia. Mariana, o desabamento do prédio do Paiçandu e agora o Museu. Metáforas da nossa falência atual quanto nação: natureza, humanidade e memória/história/ciências/arte.

Dialética envenenada - Resenha e entrevista com Roberto Schwarz, sobre Duas meninas



DIALÉTICA ENVENENADA
Duas meninas na periferia do capitalismo
"Duas Meninas", livro de ensaios do crítico Roberto Schwarz, chega às livrarias no dia 12

FERNANDO DE BARROS E SILVA
especial para a Folha

Um livro ideal para moças bem-comportadas, um presente para cativar estrangeiros, uma obra pitoresca, uma crônica ingênua, leve e encantadora -nada além disso. "Minha Vida de Menina" era até hoje apenas o diário de uma menina mineira de ascendência inglesa, natural de Diamantina, nascida na segunda metade do século passado, que resolveu reunir seus apontamentos adolescentes, feitos entre 1893 e 1894, já quando estava velha, na década de 40. A primeira edição da obra é de 1942.

O relativo desconhecimento do livrinho, a despeito de seu sucesso no exterior, explica-se pelo fato de que sempre foi considerado uma coisa sem importância, um devaneio de uma rapariga que, embora muito esperta e espevitada, nunca poderia pertencer à galeria de autores que formam o esqueleto da literatura brasileira. Dentro de duas semanas, essa imagem cristalizada em torno de "Minha Vida de Menina" vai pelos ares.

Roberto Schwarz, 58, sem publicar desde 1990, quando encerrou (mas nem tanto, como se verá) seu ciclo sobre Machado de Assis lançando "Um Mestre na Periferia do Capitalismo", publica pela Companhia das Letras um livrinho curto, contendo nada mais que dois ensaios, reunidos sob o singelo título "Duas Meninas".

Uma delas, a segunda, é a própria Helena Morley; a primeira é Capitu, a personagem-moça de "Dom Casmurro", a obra máxima da maturidade de Machado de Assis. O primeiro ensaio chama-se "A Poesia Envenenada de Dom Casmurro"; o segundo, "Outra Capitu" -e aqui já começamos a entrar no "x" da questão (leia trechos dos ensaios à pág. 5-8).

Por trás dos apontamentos soltos, da prosa dispersa e "sem intenção de arte" de Helena Morley, Schwarz descobre nada menos do que uma outra Capitu, "vivinha da Silva", uma moça de verdade igual à personagem de Machado.

A despeito da distância entre as obras, elas tornam tangível, para falar como o crítico, o que se poderia chamar de matéria brasileira: "Um conjunto de relações altamente problemático, originário da Colônia, solidamente engrenado, incompatível com o padrão da nação moderna, ao mesmo tempo um resultado consistente da evolução do mundo moderno".

Na entrevista exclusiva que concedeu ao Mais!, Schwarz não entrega o ouro de bandeja, mas deixa subentendido que a primeira consequência disso (há outras, mais invisíveis e venenosas) é que "Minha Vida de Menina" passa a fazer parte do sistema literário brasileiro, ou seja, passa a integrar a formação da literatura brasileira, tal como foi descrita no esquema formulado por Antonio Candido, que não por acaso é seu maior mestre.

Não se trata, veja bem, de uma questão de gosto avulso, de incorporação deste ou daquele autor obscuro ou da expulsão de algum outro escritor consagrado do panteão nacional. A tarefa a que se dedica Schwarz, para falar em jargão, é de incorporar à crítica os dinamismos específicos da experiência brasileira formalmente estruturados na obra.

Em relação a Machado de Assis, os resultados disso são conhecidos há tempos. Desde "A Lata de Lixo da História", peça teatral que parodiava "O Alienista", passando pelas "Idéias Fora do Lugar" e "Ao Vencedor as Batatas", até culminar, com "Um Mestre na Periferia do Capitalismo", na revelação pormenorizada da monstruosidade embutida na conduta de Brás Cubas, tido sempre como um filho-família exemplar da nossa elite paternalista.

Agora, com Helena Morley, Schwarz dá um passo adiante. Para ir logo ao ponto, mesmo correndo o risco de um certo brutalismo, próprio dos jornalistas, o crítico fala do final do século 19 como quem pretende iluminar o final do século 20. A promessa de emancipação de Capitu e Helena Morley que a história brasileira tratou de frustrar, como mostra o crítico, ganha muito se for vista à luz dos dias que correm. Não e à toa que o livro encerra indicando, quase como um ponto de fuga, a continuidade do paternalismo no modernismo brasileiro.

E aqui chegamos à essência do veneno schwarziano. Quando lançou "Um Mestre na Periferia do Capitalismo", em 90, iniciava-se a era Collor, o período recente de maior "crapulização" da classe dominante brasileira. Foi uma coincidência, obviamente, mas basta abrir o livro, por exemplo, no capítulo sobre "A Deseducação de Brás", para ver lá, palpitando nos seus anos de (de)formação, a imagem espectral da delinquência do jovem Collor barbarizando pelas ruas de Brasília.
Agora, em plena era FHC, é difícil acreditar que Schwarz tenha consumido três anos inteiros debruçado sobre Helena Morley sem ter um olho bem plantado sobre o presente. Como Machado de Assis, Schwarz despista seus contemporâneos. É como se estivesse enviando uma mensagem cifrada aos progressistas bem-intencionados de hoje: estamos no limiar de um novo ciclo de modernização conservadora que irá aprofundar os traços do atraso, repondo-os modernamente. Esse é o segredo que Schwarz descobriu nas anotações da menina de Diamantina.

Nada disso está explicitado -e não poderia ser diferente- na entrevista que segue, na qual Schwarz passa a limpo momentos da sua trajetória intelectual.

Talvez num único momento o crítico tenha deixado escapar o alcance impressionante da sua nova cria. Falava não do livro, mas de FHC, elogiando a urbanidade e a clareza com a qual o presidente é capaz de se explicar na televisão, revelando virtualidades inesperadas na profissão de professor. Mas, aí, acrescentou: "É claro que volta e meia o Brasil entra pela janela e transforma em chanchada a aula que ia tão bem". A chanchada que invade a sala do professor nem sempre se chama Íris Rezende. Às vezes podem ser apenas duas meninas, Helena e Capitu.






ENTREVISTA

Folha - O sr. quer explicar o título do livro? Por que "Duas Meninas"? Há ironia na inocência?
Schwarz - Gostaria de ouvir a sua explicação.

Folha - A sua leitura de "Dom Casmurro" é venenosa, e quem preparou o veneno, segundo o sr., foi a história do Brasil. No livro de Helena Morley a atmosfera é mais desanuviada, mas as dificuldades que a mocinha supera decorrem dos mesmos aspectos do Brasil que derrotaram Capitu.
Schwarz - É isso mesmo. A simpatia incrível de Capitu e Helena vem das dificuldades que elas souberam contornar. A envergadura das meninas é proporcional ao alcance das questões que elas enfrentam. Para falar do encanto delas é preciso entrar em matérias sociais que são o contrário de encantadoras.

Folha - O sr. quer comentar a idéia do livro? Ele tem unidade?
Schwarz - Também preferia ouvir o que você achou.
Folha - Algum tempo atrás o sr. contou que as "Duas Meninas" seriam a primeira parte de um livro de crítica em que haveria de tudo, desde orelhas de livro e resenhas até discussões de teoria crítica e argumentos políticos, até um conto sobre a privatização de uma pinguela, com prós e contras. O sr. desistiu da mistura? O título não ia ser "Sempre a Mesma Coisa"?
Schwarz - Desde que haja alguma coisa em comum aos trabalhos, sou a favor desse tipo de mistura, que a especialização acadêmica e o purismo das teorias literárias foram pondo de lado. A crítica que se fechou na literatura e se desinteressou do resto não saiu melhor ou mais científica, nem, aliás, mais artística.

Folha - Mas, então, por que o sr. preferiu um livro com delimitação de assunto? Ele não ficou menos misturado e mais exclusivamente literário?
Schwarz - Os amigos me convenceram de que assim haveria mais foco e que uma eventual discussão sairia ganhando.

O estudo sobre "Dom Casmurro" aponta as forças históricas escondidas na equação formal do romance. Esta, além de detetivesca, é sofisticada ao máximo. O estudo de "Minha Vida de Menina" faz o percurso inverso. Me impregnei o quanto pude dos apontamentos de Helena Morley, que são extraordinários, sem serem propriamente artísticos, e procurei pressentir as suas implicações formais. A sua organização latente retesa um tecido de uma consistência e complexidade de que poucos romances brasileiros podem se gabar.

Forçando um pouco a simetria, de um lado, o estudo social de uma forma; de outro, a apreciação formal de anotações do dia-a-dia em Diamantina, tomadas, como diz Alexandre Eulalio, "sem intenção de arte". Salvo engano, o universo comum que dois livros tão diferentes permitem armar sugere especulações interessantes em vários planos, escapando às banalidades escolares sobre a existência ou inexistência de relações entre literatura e sociedade. Conforme explicava um professor meu, há uma certa reversibilidade própria aos estudos literários, que permite chegar a uma visão aprofundada da realidade a partir da forma, e vice-versa. Seja como for, você vê que o meu livro continua alinhado no campo da mistura.

Folha - Mas o que o sr. entende por mistura? O sr. quer dizer que a turma da pureza, da arte separada, quer discutir questões de forma e de linguagem sem entrar noutras dimensões? Qual o inconveniente?
Schwarz - Nenhum, salvo que, sem estas dimensões ditas "externas", o debate artístico se esteriliza logo. Toda forma é forma de alguma coisa, e na ausência desta relação o essencial vai embora. Observe a mudança atmosférica em volta da revolução formal. No período explosivo, das vanguardas, esta sugeria modos de vida mais complexos e universais, que, de um modo ou outro, estariam para além das pautas burguesas.

Hoje, a pesquisa e o cálculo dos funcionamentos da forma, seja qual for, viraram a rotina da publicidade, sem oposição ao objetivo mercantil. Os próprios efeitos de distanciamento e desautomatização, a marca registrada da linguagem moderna, que ambicionavam sacudir o público e despertá-lo de seu sono histórico, agora servem para aliciar o consumidor ou para impedir que ele troque de canal de TV. Assim, se é que é verdade que nalgum momento a desautomatização, por si só, chegou a significar liberdade ou qualidade, isso já não é o caso.

Folha - Mas o que isso tem a ver com "Dom Casmurro" e Morley?
Schwarz - Como é óbvio, "Minha Vida de Menina" não tem nada de vanguardista. Mas o livro, que, ao contrário de quase tudo, não está velho, fala à simpatia e à insatisfação modernas. Há muitas razões para isso, algumas próximas do kitsch. Mas há outras que são boas. O leitor, desde que se convença da organização muito rica e mais ou menos involuntária presente nas anotações da menina, sente-se chamado a uma atitude de etnólogo amador, atento a todas as conexões possíveis, sem preconceitos, que é um análogo do estado de espírito aberto e alerta que a arte moderna desejou suscitar. Será que me engano imaginando que o nosso interesse é tonificado pelo caráter real dos apontamentos e de sua forma tácita, que não é teleguiada pelo mercado? E se o nexo de realidade for um ingrediente estético peculiar?

Dizendo de outro modo, o motivo atual de simpatia pode estar na forma com vigência ordenadora forte, capaz de grandes revelações, sem que, no entanto, responda a um desígnio de ficção ou de artista. A pesquisa artística dos segredos da forma, da linguagem e da ficção foi levada ao impasse pela sua colonização mercantil, à qual os seus achados aproveitam. É claro que não são os apontamentos de Helena Morley que vão mostrar a saída. Mas a textura relacional tangivelmente infinita dos apontamentos, desprovida de propósitos, mas dotada de âncora real, além de favorável à inteligência e ao espírito crítico, marca uma posição estética (que seria ridículo imitar). Como, no fundo, já não acreditamos em intenções individuais que prestem, uma forma em que estas fiquem em suspenso passa a ter apelo. Como gosta de dizer Helena à mãe dela, "pense e responda".

[Folha. SP.01.06.1997.]

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Busca do narrador por equilíbrio é trunfo de livro de Victor Heringer (Resenha crítica)




Busca do narrador por equilíbrio é trunfo de livro de Victor Heringer

CAMILA VON HOLDEFER 
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

No Rio de Janeiro da década de 1970, dois adolescentes se apaixonam. Camilo, narrador de "O Amor dos Homens Avulsos", encontra Cosme, um personagem cativante. O idílio, porém, é precocemente interrompido por uma tragédia. Ao mesmo tempo em que descobre o afeto, Camilo descobre a brutalidade e a injustiça.

Anos depois, em 2014, Camilo rememora o breve intervalo em que amou e foi amado por Cosme –e dá pistas de como os eventos da época, bons e maus, alteraram sua personalidade e seu futuro. Impactado pelo acontecimento trágico que o separa irremediavelmente de Cosme, Camilo passa a catalogar o mundo de um jeito peculiar, identificando padrões e analisando o entorno com algum distanciamento.

Para Camilo, tudo é idêntico, banal e inalterável –apenas Cosme era um ponto fora da curva. É, por um lado, um inventário desapaixonado, que se limita a quantificar e qualificar sem tomar partido. Intercaladas com o texto, imagens ajudam a dar a ideia de um inventário diferente, este afetivo, ligado às lembranças de Cosme. Nascido em 1988, Victor Heringer apresenta uma escrita surpreendentemente madura. O apurado trabalho de linguagem, que evidencia uma noção de ritmo e sonoridade que parece intuitiva, revela uma voz que não fica a dever para os autores mais experientes. O ponto forte do livro, aquele que sustenta a construção do protagonista, é a maneira pela qual o desencanto mede forças com o deslumbramento. Essa busca constante pelo equilíbrio do narrador torna o livro bem-sucedido. Camilo só não soa completamente desiludido porque pode evocar os bons momentos e as boas sensações do passado. Com a lembrança do sentimento por Cosme intacta –ainda que o rosto amado tenha se apagado da memória–, resta em Camilo um resquício de esperança. Embora não seja tão simples, boa parte do dilema de Camilo reside na escolha do que resgatar do passado. De um lado, há o sentimento de ódio e vingança; de outro, a doçura que Cosme transmitiu. É extremamente difícil calibrar essa oscilação sem tornar uma narrativa pueril ou banal.

Com um excelente domínio da linguagem, que é ora violenta, ora quase poética, Heringer consegue se sair bem. O que ele alcança, mais do que a oscilação, é o meio-termo. "Nasci póstumo", diz Camilo em dado momento. Em uma fase de descoberta e expectativa, Camilo foi marcado pela sensação de impotência. Só se é póstumo quando não se tem mais a esperança –o ímpeto que é sobretudo juvenil–de transformar ou conquistar o que quer que seja. A esperança foi negada ao adolescente Camilo, mas não, talvez, ao Camilo de meia-idade. Aos cinquenta anos, surge a possibilidade de outro tipo de afeto, capaz de restaurar aquele Camilo que um dia amou e seguirá amando Cosme. 


O AMOR DOS HOMENS AVULSOS AUTOR Victor Heringer EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 39,90 (160 págs.)  

O amor dos homens avulsos, de Victor Heringer


"Eu estava comentando hoje mais cedo sobre a surpresa absoluta e deliciosa que foi a chegada do original dele: o Victor conversava com o passado enquanto puxava assunto com o futuro. “O amor…” era de cara um livro de ambiência e prosa muito próximas do leitor de literatura brasileira: uma crônica de saudade ambientada no Rio de Janeiro. Mas tudo isso vinha acompanhado de um approach muito contemporâneo e inventivo, configurando quase uma espécie de happening em torno de Machado, Marques Rebelo e dos cronistas canônicos da cidade. Havia um carinho por uma tradição — a crônica urbana do Rio, a história tragicômica do subúrbio, o ethos de uma sociedade mestiça (em todos os sentidos dessa palavra) — mas filtrado por uma inteligência muito aguda e informada de alguém que cresceu na internet praticando a poesia, o ensaio, o vídeo etc. O romance dele é uma síntese disso. E é um livro amoroso, na amplitude do termo. (Leandro Sarmatz, editor, poeta e escritor, editou o romance “O amor dos homens avulsos”, último livro publicado por Victor Heringer)"



Falei com o Victor Heringer poucas vezes, então não posso dizer nada muito pessoal sobre ele. Ao mesmo tempo, se todo livro tem algo da personalidade do autor – uma parte grande e importante, especialmente se o livro é bom –, falar de literatura não deixa de ser uma intimidade compartilhada. Para quem lê com atenção, muita coisa surge nessas entrelinhas: “O amor dos homens avulsos”, por exemplo, transborda um tipo de inadequação tão trágica (para quem tem de vivê-la na realidade) quanto original (para quem extrai dela a voz necessária para se expressar, na velha e sempre renovada forma romântica). A dicção estranha de algumas frases, a sensibilidade que parece de outra época (antiga como a vida no subúrbio onde se passa a história), um tom vagamente nostálgico/mítico mesmo que contrastado com a brutalidade do presente narrativo: tudo neste romance aponta para uma espécie de ideal de tempo, lugar, linguagem e afetos que não são os que temos aqui e agora. É uma forma sutil de recusa, que soa radical num texto também tão cheio de ternura, e talvez um comentário sobre quem o escreveu – seu passado, seu presente, quem sabe o seu curto futuro. (Michel Laub, escritor)



Conheci o trabalho do Victor Heringer quando me pediram que resenhasse “O amor dos homens avulsos” para a Folha de S.Paulo. Um autor tão jovem, um título com tantas ressonâncias. Vamos lá, pensei. Li o romance em uma tarde, encantada e emocionada. Cada autor, e em especial cada livro, é uma combinação única. Mas aquela era diferente, era singular de um jeito ainda mais específico. Tudo ali era harmonia e afinação, a delicadeza se sobressaindo nos detalhes. Isso é raro, e é ainda mais bonito quando se manifesta em e através de um escritor tão jovem. Havia, e ainda há, e vai continuar a haver, algo ali. Algo muito poderoso. E distinto, inimitável. Em alguma medida, os autores mais talentosos têm sempre esse algo inimitável — que os torna quem são, que os destaca, que os marca para sempre. (Camila von Holdefer, crítica literária)



19 notas sobre Victor Heringer, por Luisa Geisler

19.

    Victor Heringer faleceu dia 7 de março agora. A nota de jornal não dizia a causa, o que explica a causa. Nós nunca nos falamos, mais do que um comentário ou outro em uma rede social. Sua falta não teve nenhum impacto concreto em minha vida. E teve um impacto concreto muito grande na minha vida.



18.

    Como aquelas pessoas que acham que conhecem os autores de forma íntima porque leram seus livros, eu achava que conhecia Victor Heringer de forma íntima. Conhecia Glória e O amor dos homens avulsos. E o Lígia, do projeto Formas Breves. Conhecia as crônicas. Não sei o que conta onde.



17.

    Quase conheci Victor em pessoa uma vez. Eu estava no Rio de Janeiro, ou em São Paulo. E ele também. A gente tinha marcado uma cerveja com mais alguém? Esse mais alguém desmarcou, e aí Victor comentou de um jazz. Não lembro se era jazz. É tão vago. Alguma música. Neguei, porque não sou uma pessoa de jazz. Eu não entendo de jazz. E tenho ansiedade social, grandes aglomerações, ataques de pânico. Acabamos não nos vendo.



16.

    Ele tinha 29 anos, menos de trinta, dois a mais que eu. Por algum motivo, me peguei pensando “mas tão novo…”. Aquelas frases de vó: “mas era um guri tão bom…”. E era. Era um guri tão bom.



15.

    Comentei com minha agente, Marianna Teixeira Soares, sobre ele, porque sabia que ela era muito apegada. Ela disse que eu me apaixonaria. Acho que figurativamente. Mas eu nutria um crush fangirl literário por ele, sim.

14.

    Tem aquela frase de Camus.



13.

    Deve existir uma realidade paralela em que eu entendo de jazz e fui ao jazz e aí nós nos encontramos e falamos sobre ser escritores jovens e aí casamos e tivemos três filhinhos lindos e literários, todos, e viramos um desses casais literários conhecidos tipo José e Pilar.



12.

    Deve existir uma realidade paralela em que eu entendo de jazz e fui ao jazz e aí nós nos encontramos e falamos sobre ser escritores jovens e aí brigamos e aí viramos uns desses inimigos literários conhecidos, tipo Virginia Woolf e James Joyce. Nessa realidade, eu teria um gosto literário diferente.



11.

    Alguém tinha feito uma postagem sobre o livro Primeiro mataram meu pai. Victor tinha sido o tradutor. Victor postou nos comentários que era um dos livros mais pesados que já tinha traduzido. Isso na semana antes do acontecido. 



10.

    Não lido bem com morte. Não lido bem com decidir cessar de existir.



9.

    Uma vez, numa postagem de Instagram, ele postou uma foto que, em um canto, aparecia a caixa da medicação que tomava.  Era uma medicação que eu tomava na época. Pensei em fazer um comentário engraçado, mas fiquei com ansiedade social de que outras pessoas pudessem ver.



8.

Victor é o nome do meu irmão.



7.

    Meu sonho era uma mesa meio-irônica meio estilo aquele post escritores amarelos com ele, a Vanessa Barbara e eu. Algum título de piada meio tosco, tipo “Diferentões: autores dopados com drogas não-recreativas”. Sei lá. Mais escritores deviam falar dessas coisas, eu acho.



6.

    Hoje o Instagram e o Twitter dele estão com tudo deletado.



5.

    Victor é um escritor sagaz. Penso na palavra “sagaz” quando penso na escrita dele. Inteligente, ágil, preciso. Parece atrair com imãs palavras que fico horas buscando no Thesaurus. Pra mim, é aquela literatura meio viagem turística, dessas que você não se importa com aonde vai chegar, você está ali pela viagem. Só me conta uma história, e cada frase é uma história em si.



4.

    Não sei sobre o Facebook porque não tive coragem de acessar.



3.

    Porque esse texto é mais sobre mim do que ele. Sei que estou objetificando Victor de certa maneira, idealizando, pois nunca o conheci em pessoa. Como comentei, nunca fui ao jazz. Essas pessoas o conheceram. Mas eu conheci um escritor. Escritor que fará muita falta.



2.

    Que possa descansar, enfim. Honro a memória dele buscando mais de suas poesias, que não conhecia. E saúdo o autor, que eu conhecia. Este me recuso a perder.



1.

    Fui entrar no site oficial dele, que ainda está no ar, para conferir a idade. A imagem de topo, uma foto dele, se mexe, é um gif. Só que enquanto a foto estava em baixa resolução, ela não se moveu. Até terminar de carregar. Aí, enquanto eu procuro a data de nascimento, Victor Heringer pisca enquanto parece engolir em seco.

* * * * *
Luisa Geisler nasceu em Canoas (RS) em 1991. Publicou Contos de mentira (finalista do Jabuti, vencedor do Prêmio SESC de Literatura), Quiçá (finalista do Prêmio Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Machado de Assis, vencedor do Prêmio SESC de Literatura). Seu último livro, Luzes de emergência se acenderão automaticamente, foi publicado pela Alfaguara em 2014. Tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico) e acha essa imagem simpática.
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Estudando os contistas pós-utopicos ou as novas formas
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