segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Dialética envenenada - Resenha e entrevista com Roberto Schwarz, sobre Duas meninas



DIALÉTICA ENVENENADA
Duas meninas na periferia do capitalismo
"Duas Meninas", livro de ensaios do crítico Roberto Schwarz, chega às livrarias no dia 12

FERNANDO DE BARROS E SILVA
especial para a Folha

Um livro ideal para moças bem-comportadas, um presente para cativar estrangeiros, uma obra pitoresca, uma crônica ingênua, leve e encantadora -nada além disso. "Minha Vida de Menina" era até hoje apenas o diário de uma menina mineira de ascendência inglesa, natural de Diamantina, nascida na segunda metade do século passado, que resolveu reunir seus apontamentos adolescentes, feitos entre 1893 e 1894, já quando estava velha, na década de 40. A primeira edição da obra é de 1942.

O relativo desconhecimento do livrinho, a despeito de seu sucesso no exterior, explica-se pelo fato de que sempre foi considerado uma coisa sem importância, um devaneio de uma rapariga que, embora muito esperta e espevitada, nunca poderia pertencer à galeria de autores que formam o esqueleto da literatura brasileira. Dentro de duas semanas, essa imagem cristalizada em torno de "Minha Vida de Menina" vai pelos ares.

Roberto Schwarz, 58, sem publicar desde 1990, quando encerrou (mas nem tanto, como se verá) seu ciclo sobre Machado de Assis lançando "Um Mestre na Periferia do Capitalismo", publica pela Companhia das Letras um livrinho curto, contendo nada mais que dois ensaios, reunidos sob o singelo título "Duas Meninas".

Uma delas, a segunda, é a própria Helena Morley; a primeira é Capitu, a personagem-moça de "Dom Casmurro", a obra máxima da maturidade de Machado de Assis. O primeiro ensaio chama-se "A Poesia Envenenada de Dom Casmurro"; o segundo, "Outra Capitu" -e aqui já começamos a entrar no "x" da questão (leia trechos dos ensaios à pág. 5-8).

Por trás dos apontamentos soltos, da prosa dispersa e "sem intenção de arte" de Helena Morley, Schwarz descobre nada menos do que uma outra Capitu, "vivinha da Silva", uma moça de verdade igual à personagem de Machado.

A despeito da distância entre as obras, elas tornam tangível, para falar como o crítico, o que se poderia chamar de matéria brasileira: "Um conjunto de relações altamente problemático, originário da Colônia, solidamente engrenado, incompatível com o padrão da nação moderna, ao mesmo tempo um resultado consistente da evolução do mundo moderno".

Na entrevista exclusiva que concedeu ao Mais!, Schwarz não entrega o ouro de bandeja, mas deixa subentendido que a primeira consequência disso (há outras, mais invisíveis e venenosas) é que "Minha Vida de Menina" passa a fazer parte do sistema literário brasileiro, ou seja, passa a integrar a formação da literatura brasileira, tal como foi descrita no esquema formulado por Antonio Candido, que não por acaso é seu maior mestre.

Não se trata, veja bem, de uma questão de gosto avulso, de incorporação deste ou daquele autor obscuro ou da expulsão de algum outro escritor consagrado do panteão nacional. A tarefa a que se dedica Schwarz, para falar em jargão, é de incorporar à crítica os dinamismos específicos da experiência brasileira formalmente estruturados na obra.

Em relação a Machado de Assis, os resultados disso são conhecidos há tempos. Desde "A Lata de Lixo da História", peça teatral que parodiava "O Alienista", passando pelas "Idéias Fora do Lugar" e "Ao Vencedor as Batatas", até culminar, com "Um Mestre na Periferia do Capitalismo", na revelação pormenorizada da monstruosidade embutida na conduta de Brás Cubas, tido sempre como um filho-família exemplar da nossa elite paternalista.

Agora, com Helena Morley, Schwarz dá um passo adiante. Para ir logo ao ponto, mesmo correndo o risco de um certo brutalismo, próprio dos jornalistas, o crítico fala do final do século 19 como quem pretende iluminar o final do século 20. A promessa de emancipação de Capitu e Helena Morley que a história brasileira tratou de frustrar, como mostra o crítico, ganha muito se for vista à luz dos dias que correm. Não e à toa que o livro encerra indicando, quase como um ponto de fuga, a continuidade do paternalismo no modernismo brasileiro.

E aqui chegamos à essência do veneno schwarziano. Quando lançou "Um Mestre na Periferia do Capitalismo", em 90, iniciava-se a era Collor, o período recente de maior "crapulização" da classe dominante brasileira. Foi uma coincidência, obviamente, mas basta abrir o livro, por exemplo, no capítulo sobre "A Deseducação de Brás", para ver lá, palpitando nos seus anos de (de)formação, a imagem espectral da delinquência do jovem Collor barbarizando pelas ruas de Brasília.
Agora, em plena era FHC, é difícil acreditar que Schwarz tenha consumido três anos inteiros debruçado sobre Helena Morley sem ter um olho bem plantado sobre o presente. Como Machado de Assis, Schwarz despista seus contemporâneos. É como se estivesse enviando uma mensagem cifrada aos progressistas bem-intencionados de hoje: estamos no limiar de um novo ciclo de modernização conservadora que irá aprofundar os traços do atraso, repondo-os modernamente. Esse é o segredo que Schwarz descobriu nas anotações da menina de Diamantina.

Nada disso está explicitado -e não poderia ser diferente- na entrevista que segue, na qual Schwarz passa a limpo momentos da sua trajetória intelectual.

Talvez num único momento o crítico tenha deixado escapar o alcance impressionante da sua nova cria. Falava não do livro, mas de FHC, elogiando a urbanidade e a clareza com a qual o presidente é capaz de se explicar na televisão, revelando virtualidades inesperadas na profissão de professor. Mas, aí, acrescentou: "É claro que volta e meia o Brasil entra pela janela e transforma em chanchada a aula que ia tão bem". A chanchada que invade a sala do professor nem sempre se chama Íris Rezende. Às vezes podem ser apenas duas meninas, Helena e Capitu.






ENTREVISTA

Folha - O sr. quer explicar o título do livro? Por que "Duas Meninas"? Há ironia na inocência?
Schwarz - Gostaria de ouvir a sua explicação.

Folha - A sua leitura de "Dom Casmurro" é venenosa, e quem preparou o veneno, segundo o sr., foi a história do Brasil. No livro de Helena Morley a atmosfera é mais desanuviada, mas as dificuldades que a mocinha supera decorrem dos mesmos aspectos do Brasil que derrotaram Capitu.
Schwarz - É isso mesmo. A simpatia incrível de Capitu e Helena vem das dificuldades que elas souberam contornar. A envergadura das meninas é proporcional ao alcance das questões que elas enfrentam. Para falar do encanto delas é preciso entrar em matérias sociais que são o contrário de encantadoras.

Folha - O sr. quer comentar a idéia do livro? Ele tem unidade?
Schwarz - Também preferia ouvir o que você achou.
Folha - Algum tempo atrás o sr. contou que as "Duas Meninas" seriam a primeira parte de um livro de crítica em que haveria de tudo, desde orelhas de livro e resenhas até discussões de teoria crítica e argumentos políticos, até um conto sobre a privatização de uma pinguela, com prós e contras. O sr. desistiu da mistura? O título não ia ser "Sempre a Mesma Coisa"?
Schwarz - Desde que haja alguma coisa em comum aos trabalhos, sou a favor desse tipo de mistura, que a especialização acadêmica e o purismo das teorias literárias foram pondo de lado. A crítica que se fechou na literatura e se desinteressou do resto não saiu melhor ou mais científica, nem, aliás, mais artística.

Folha - Mas, então, por que o sr. preferiu um livro com delimitação de assunto? Ele não ficou menos misturado e mais exclusivamente literário?
Schwarz - Os amigos me convenceram de que assim haveria mais foco e que uma eventual discussão sairia ganhando.

O estudo sobre "Dom Casmurro" aponta as forças históricas escondidas na equação formal do romance. Esta, além de detetivesca, é sofisticada ao máximo. O estudo de "Minha Vida de Menina" faz o percurso inverso. Me impregnei o quanto pude dos apontamentos de Helena Morley, que são extraordinários, sem serem propriamente artísticos, e procurei pressentir as suas implicações formais. A sua organização latente retesa um tecido de uma consistência e complexidade de que poucos romances brasileiros podem se gabar.

Forçando um pouco a simetria, de um lado, o estudo social de uma forma; de outro, a apreciação formal de anotações do dia-a-dia em Diamantina, tomadas, como diz Alexandre Eulalio, "sem intenção de arte". Salvo engano, o universo comum que dois livros tão diferentes permitem armar sugere especulações interessantes em vários planos, escapando às banalidades escolares sobre a existência ou inexistência de relações entre literatura e sociedade. Conforme explicava um professor meu, há uma certa reversibilidade própria aos estudos literários, que permite chegar a uma visão aprofundada da realidade a partir da forma, e vice-versa. Seja como for, você vê que o meu livro continua alinhado no campo da mistura.

Folha - Mas o que o sr. entende por mistura? O sr. quer dizer que a turma da pureza, da arte separada, quer discutir questões de forma e de linguagem sem entrar noutras dimensões? Qual o inconveniente?
Schwarz - Nenhum, salvo que, sem estas dimensões ditas "externas", o debate artístico se esteriliza logo. Toda forma é forma de alguma coisa, e na ausência desta relação o essencial vai embora. Observe a mudança atmosférica em volta da revolução formal. No período explosivo, das vanguardas, esta sugeria modos de vida mais complexos e universais, que, de um modo ou outro, estariam para além das pautas burguesas.

Hoje, a pesquisa e o cálculo dos funcionamentos da forma, seja qual for, viraram a rotina da publicidade, sem oposição ao objetivo mercantil. Os próprios efeitos de distanciamento e desautomatização, a marca registrada da linguagem moderna, que ambicionavam sacudir o público e despertá-lo de seu sono histórico, agora servem para aliciar o consumidor ou para impedir que ele troque de canal de TV. Assim, se é que é verdade que nalgum momento a desautomatização, por si só, chegou a significar liberdade ou qualidade, isso já não é o caso.

Folha - Mas o que isso tem a ver com "Dom Casmurro" e Morley?
Schwarz - Como é óbvio, "Minha Vida de Menina" não tem nada de vanguardista. Mas o livro, que, ao contrário de quase tudo, não está velho, fala à simpatia e à insatisfação modernas. Há muitas razões para isso, algumas próximas do kitsch. Mas há outras que são boas. O leitor, desde que se convença da organização muito rica e mais ou menos involuntária presente nas anotações da menina, sente-se chamado a uma atitude de etnólogo amador, atento a todas as conexões possíveis, sem preconceitos, que é um análogo do estado de espírito aberto e alerta que a arte moderna desejou suscitar. Será que me engano imaginando que o nosso interesse é tonificado pelo caráter real dos apontamentos e de sua forma tácita, que não é teleguiada pelo mercado? E se o nexo de realidade for um ingrediente estético peculiar?

Dizendo de outro modo, o motivo atual de simpatia pode estar na forma com vigência ordenadora forte, capaz de grandes revelações, sem que, no entanto, responda a um desígnio de ficção ou de artista. A pesquisa artística dos segredos da forma, da linguagem e da ficção foi levada ao impasse pela sua colonização mercantil, à qual os seus achados aproveitam. É claro que não são os apontamentos de Helena Morley que vão mostrar a saída. Mas a textura relacional tangivelmente infinita dos apontamentos, desprovida de propósitos, mas dotada de âncora real, além de favorável à inteligência e ao espírito crítico, marca uma posição estética (que seria ridículo imitar). Como, no fundo, já não acreditamos em intenções individuais que prestem, uma forma em que estas fiquem em suspenso passa a ter apelo. Como gosta de dizer Helena à mãe dela, "pense e responda".

[Folha. SP.01.06.1997.]

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