sábado, 5 de janeiro de 2019

Duas Narrativas Fantásticas Dostoievski




Leitura do dia 4.1.2019, as duas novelas que compões este livro da editora 34. Designadas pelo próprio autor como “narrativas fantásticas”, as duas novelas aqui reunidas foram publicadas pela primeira vez nas páginas do Diário de um escritor, publicação mensal redigida por Dostoiévski entre 1876 e 1881. 

Em ambas aqueles enormes monólogos nos quais dois narradores masculinos dilaceram-se. 

O primeiro [A dócil] por amor, pela incapacidade de entender o porque do suicídio da sua "dócil" esposa de 17 anos (ele, um quarentão sovina e bruto proprietário de casa de penhor, ex-soldado desonrado por covardia). Infeliz desde a orfandade, quando enviada para casa de duas tias que a exploram/humilham e a pretendem vender a um vizinho, ela busca "libertar-se" casando com o narrador que conhecera a penhorar seus míseros bens. Incapaz de delicadezas, ambos vão se afastando, principalmente por que ele a deseja mais submissa do que ela se revela, domar seu caráter torna uma obsessão, o que redonda num ciúme. Sabe então por uma tia que ela encontrar um amante que é seu ex-companheiro de quartel, testemunha de sua "covardia". Escondido atrás de uma porta, ele a vê zombar das cantadas do sujeito, rechaçando-o, ainda assim suspeita dela e compra-lhe uma cama e passam a dormir separados. Ela mergulha num adoecimento, ele então teme perde-la, traz médico, pretende vender seu negócio e viajar com ela. Explode numa locura emocional, se lançando aos pés dela que mais se angustia. Por fim, no dia da partida, ela apanha um "ícone religioso que levara para penhorar" e ela se joga da janela, suicidando-se diante da empregada, sem qualquer razão. Ele especula se foi por sua fraqueza, pois ele confessara-lhe depois ter sido realmente um covarde (devoto ele tia aberto a alma para ela como um possesso e beijado-lhe os pés) ou por que antes, quando ela descobrira a arma que pretendia mata-la, ela a apontara na sua cabeça enquanto ele fingia dormir. Mas não há respostas. Certamente essa narrativa serviu de inspiração ao São Bernardo, de Graciliano Ramos. 

A segunda narrativa [O sonho de um homem ridículo] é de teor religioso, um cristianismo que lembra o paganismo de um Alberto Caeiro. Um homem repleto de angustia existencial, achando-se em desconformidade com o mundo, e indiferente a dor e a existência de todos os homens, cogita se matar. Compra para isso uma arma, contudo, na noite que faria isso é abordado na rua por uma criança em desespero que pede socorro em desespero pela mãe, ela a afasta com truculência, e já no seu quarto de hotel (onde vizinho de quarto é um capitão militar decadente que faz sessões de birita e carteado e apavora a todos os demais inquilinos) se encontra adormecido, ele prepara-se para dar um tiro na cabeça. Ele, entretanto, sem entender por quê, adormece e tem um sonho em que está num planeta semelhante ao Éden, onde todos são virtuosos e bons, lá ele tem uma existência perfeita, totalmente integrado é amado e ama a todos seus habitantes. Essa "eternidade" é, finalmente, conspurcada por sua própria malícia, contamina-os com a mentira, depois com a desconfiança, orgulho, luxúria, ira, vaidade etc, até o primeiro assassinato. Isso é pretexto para Dostoievski refletir que já estamos no paraíso, mas é o homem que o destrói, em grande parte por seu racionalismo, seu distanciamento da vida espontânea harmonizada com a natureza e com os animais. Ele se torna louco neste planeta, e quando vai se matar, desperta no quarto de hotel transformado. Então se torna um pregador, lembra-se da "culpa" do abandono da menina, e tenta se redimir anunciando sua "visão" do paraíso (há algo de Dante nisto, certamente), sendo visto por todos como um fantasioso, tresloucado, um homem ridículo justamente por pregar o "amar uns aos outros" (máxima que ele toma como perfeita e resposta para tudo). É o misticismo epifânico de Dostoievski, entre o ideais "comunistas" anti-messiânico, mas do qual ele se faz profeta, anunciando o viver com simplicidade abdicando ao racionalismo, a ciência, ao pensamento ordenador que afasta o homem da natureza e do que existe concretamente.. 


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