As treze histórias de Nada mais foi dito nem perguntado parecem ter saído sozinhas dos fóruns, das barras dos tribunais, e se transferido num passe de mágica para as páginas do livro.
Tanta autonomia, tanta vida própria -- como se dispensassem um autor --, é precisamente o principal mérito delas ou do estilo de seu criador, o advogado criminalista, que agora se revela escritor, Luís Francisco Carvalho Filho.
São pequenos contos retirados do universo forense e criminal: interrogatórios de delegacias, análises de processos, julgamentos, defesas, acusações. São parábolas da Justiça: narrativas curtas que reproduzem, com "realismo insubornável" -- para usar o que Otto Maria Carpeaux dizia das descrições de Kafka -- toda a eloqüência literário-teatral inerente ao discurso jurídico e ao próprio sistema penal.
São mesmo pequenas peças de teatro, histórias substantivas, cujos títulos (não à toa) são sempre um substantivo -- "Perna", "Injúria", "Cigarro", "Pederasta" etc. --, e cujo desenrolar se dá em forma de diálogos concisos, tensos e rápidos, num tom que vai do patético ao cômico.
Interessante perceber a argúcia estética com que o olhar observador do advogado se transfigura em golpe de vista literário -- só o narrador como este criado por Luís Francisco, a partir de tanta experiência vivida, pode ser o juiz isento, imparcial, tão almejado pela Justiça, o "não-eu" do realismo, preocupado apenas em apresentar um sinônimo da realidade concreta.
A Justiça fracassa. A literatura não fracassa, eis o que se pode, desde logo, depreender dos pequenos contenciosos judiciais que constituem os enredos dessas histórias deliciosas de ler. A narrativa de Luís Francisco encerra em sua estrutura dramática o questionamento das contradições internas da lei e da Justiça: discute o que é relevante e irrelevante para a busca da verdade ou da correção na dinâmica dos julgamentos e das condenações de homens defeituosos por homens defeituosos.
Todo um universo de linguagem, fatos e episódios desconhecido do cidadão comum sai das misteriosas e tediosas salas de audiência e ganha vida nas histórias desta coletânea. A lei e a Justiça são mostradas aqui no âmago da sua ferida, no que têm de dor e humor, de cacoete e de representação. Os personagens criados pelo escritor -- caricaturas de juízes, advogados, réus, funcionários, investigadores, delegados etc. -- São a expressão mesma dos vícios e paradoxos de um sistema fragilizado, quase falido na sua atuação nos seus duvidosos critérios de interpretação.
Os finais incompletos de todos os contos -- em que nada mais há para ser dito, em que perdura a interrogação, a demora, a inconclusão -- são a confirmação estética de que a Justiça não passa de impossibilidade -- impossibilidade de expressão e de realização.
Enquanto em Kafka o desfecho é, em qualquer caso, que somos fatalmente culpados e condenados à morte, à qual todas as criaturas são condenadas, na literatura de Luís Francisco Carvalho Filho -- e eis aí mais um aspecto da importância histórico-literária de seu texto -- estamos, a maioria de nós, brasileiros, condenados não apenas à morte fatal. A nossa condenação tem o agravante da desigualdade, da insensibilidade, da corrupção da falta de inteligência -- estamos condenados ao nada, ao silêncio aterrador da falta de possibilidade.
Marilene Felinto
[Orelha/introdução de Marilene Felinto para o livro de contos de Luís Francisco Carvalho Filho. Concisa e perspicaz análise desse livro interessantíssimo, que mira numa linguagem sintética, na forma de esquetes/cenas (com direito à rubricas introdutórias) o "drama" da justiça, com a formalidade de um discurso revelador dos julgamentos que mira contradições do Brasil contemporâneo.]
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