domingo, 8 de maio de 2011

Orelha para Nada mais foi dito nem perguntado

As treze histórias de Nada mais foi dito nem perguntado parecem ter saído sozinhas dos fóruns, das barras dos tribunais, e se transferido num passe de mágica para as páginas do livro.

Tanta autonomia, tanta vida própria -- como se dispensassem um autor --, é precisamente o principal mérito delas ou do estilo de seu criador, o advogado criminalista, que agora se revela escritor, Luís Francisco Carvalho Filho.

São pequenos contos retirados do universo forense e criminal: interrogatórios de delegacias, análises de processos, julgamentos, defesas, acusações. São parábolas da Justiça: narrativas curtas que reproduzem, com "realismo insubornável" -- para usar o que Otto Maria Carpeaux dizia das descrições de Kafka -- toda a eloqüência literário-teatral inerente ao discurso jurídico e ao próprio sistema penal.

São mesmo pequenas peças de teatro, histórias substantivas, cujos títulos (não à toa) são sempre um substantivo -- "Perna", "Injúria", "Cigarro", "Pederasta" etc. --, e cujo desenrolar se dá em forma de diálogos concisos, tensos e rápidos, num tom que vai do patético ao cômico.

Interessante perceber a argúcia estética com que o olhar observador do advogado se transfigura em golpe de vista literário -- só o narrador como este criado por Luís Francisco, a partir de tanta experiência vivida, pode ser o juiz isento, imparcial, tão almejado pela Justiça, o "não-eu" do realismo, preocupado apenas em apresentar um sinônimo da realidade concreta.

A Justiça fracassa. A literatura não fracassa, eis o que se pode, desde logo, depreender dos pequenos contenciosos judiciais que constituem os enredos dessas histórias deliciosas de ler. A narrativa de Luís Francisco encerra em sua estrutura dramática o questionamento das contradições internas da lei e da Justiça: discute o que é relevante e irrelevante para a busca da verdade ou da correção na dinâmica dos julgamentos e das condenações de homens defeituosos por homens defeituosos.

Todo um universo de linguagem, fatos e episódios desconhecido do cidadão comum sai das misteriosas e tediosas salas de audiência e ganha vida nas histórias desta coletânea. A lei e a Justiça são mostradas aqui no âmago da sua ferida, no que têm de dor e humor, de cacoete e de representação. Os personagens criados pelo escritor -- caricaturas de juízes, advogados, réus, funcionários, investigadores, delegados etc. -- São a expressão mesma dos vícios e paradoxos de um sistema fragilizado, quase falido na sua atuação nos seus duvidosos critérios de interpretação.

Os finais incompletos de todos os contos -- em que nada mais há para ser dito, em que perdura a interrogação, a demora, a inconclusão -- são a confirmação estética de que a Justiça não passa de impossibilidade -- impossibilidade de expressão e de realização.

Enquanto em Kafka o desfecho é, em qualquer caso, que somos fatalmente culpados e condenados à morte, à qual todas as criaturas são condenadas, na literatura de Luís Francisco Carvalho Filho -- e eis aí mais um aspecto da importância histórico-literária de seu texto -- estamos, a maioria de nós, brasileiros, condenados não apenas à morte fatal. A nossa condenação tem o agravante da desigualdade, da insensibilidade, da corrupção da falta de inteligência -- estamos condenados ao nada, ao silêncio aterrador da falta de possibilidade.

Marilene Felinto



[Orelha/introdução de Marilene Felinto para o livro de contos de Luís Francisco Carvalho Filho. Concisa e perspicaz análise desse livro interessantíssimo, que mira numa linguagem sintética, na forma de esquetes/cenas  (com direito à rubricas introdutórias) o "drama" da justiça, com a formalidade de um discurso revelador dos julgamentos que mira contradições do Brasil contemporâneo.]

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