A convite do Sabático, Walnice Nogueira Galvão, Alcides Villaça (ambos da USP) e Francisco Foot Hardman (da Unicamp) debruçaram-se, respectivamente, sobre a narrativa, a poesia e o ensaísmo que os autores do País têm levado ao público. Longe de pretender esgotar a reflexão sobre esses gêneros ou estabelecer novos cânones, a série - que começa nesta edição, com o artigo de Walnice, e prosseguirá nos dois próximos números - pretende funcionar como mais um instrumento oferecido aos leitores para que compreendam melhor as linhas de força da literatura que se pratica hoje por aqui.
FIGURAÇÕES DA NARRATIVA ATUAL
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
Qualquer olhar sobre a ficção contemporânea é logo de saída atravancado pela avalanche da produção e pela lógica do mercado, que finalmente impôs o modelo do best-seller. Sem esquecer que a era digital trouxe a possibilidade de cada um publicar seu livro, dispensando a mediação das editoras. Autônomos, textos curtos como contos e poemas circulam intensamente pela internet, na vivacidade dos boletins eletrônicos e dos blogs.
Para ater-nos ao livro, é bom lembrar que o mercado nacional conheceu inédita expansão nos anos 90, quando proliferaram as pequenas editoras, elevando seu total no país a cerca de 500, na estimativa da Câmara Brasileira do Livro. Dentre elas, umas 50 maiores controlam 70% do mercado, sobrando uma pequena parcela para as muitas outras. Trata-se de um setor nada desprezível, já que seu volume de negócios, embora menor quando comparado ao das línguas dominantes, é da ordem de US$ 2 bilhões.
Nunca se editou tanto no Brasil. A produção cresceu a tal ponto que, antes da retração dos últimos anos, elevou o país ao 10.º lugar no ranking mundial. Da ficção, vasta e variada, examinaremos apenas os pontos mais altos, que sobressaem da mediania. Uma abordagem panorâmica dos contextos permitirá levar em conta não só os temas como também as formas, para esboçar as modulações que a prosa literária perfaz no novo milênio.
Prosa literária. Não há como escapar ao diagnóstico de que nossa literatura tornou-se metropolitana, para isso desertando o regionalismo, que entretanto agoniza mas sobrevive após meio século de hegemonia, defendido pela pena de João Ubaldo Ribeiro, Antonio Torres, Francisco Dantas, Assis Brasil. Um tal perfil encontra sua expressão na forma dominante da ficção de nosso tempo, em qualquer país, que é o thriller, como o chamam os norte-americanos, definido pela ação violenta cheia de suspense.
Tendendo ao despojamento, trouxe tanto o desprezo pela retórica quanto a vontade de depuração, vindo enxugar nossa prosa. No processo, encolheu o léxico, que se tornou limitado, e a gama de assuntos. Devotou-se a escrever sucinto, direto, elíptico, e como que impôs um modelo de literatura metropolitana a seus praticantes. E abandonou a experimentação e as questões de forma. Os leitores, assim afinados, passaram a achar outro tipo de prosa indulgente, derramado, beletrista. Essas marcas passariam a ser a tônica no panorama literário. O carro-chefe da tendência é a obra de Rubem Fonseca, em cuja esteira surgiram Nelson de Oliveira, Fernando Bonassi, Marçal Aquino, Patrícia Melo, Luiz Ruffato, Marcelo Mirisola.
De modo minoritário, sobrenadam outras tendências. Por exemplo, a afirmação crescente do romance histórico, em que se reelaboram episódios pretéritos, recriados em craveira ficcional, praticado por Márcio Souza, Alberto Mussa, Ana Miranda, João Silvério Trevisan, Isaías Pessotti. No outro extremo, a ponta de lança é empunhada pela obra dos pós-modernos. Estes põem em xeque a narrativa tradicional, estilhaçando-a, manejando a intertextualidade, a colagem e a montagem, em seu propósito de desconstruí-la. Basta um olhar à obra de Ignácio de Loyola Brandão, Silviano Santiago, João Gilberto Noll, Valêncio Xavier, Chico Buarque, João Almino, Bernardo Carvalho.
Por seu interesse e novidade destacam-se os reclamos dos guetos, das margens, do não hegemônico: falamos agora dos negros, dos homossexuais, das mulheres. Estes escritores podem estar participando de uma urgente tarefa internacional, qual seja a de dar voz a minorias e oprimidos. A voz dos negros se faz ouvir no presente, especialmente aquela oriunda da periferia e da favela, do cinturão violento da metrópole. São exemplares as obras de Ferrez e de Cuti.
O resgate das reivindicações das mulheres é notável nos trabalhos universitários, com a revelação de obras escritas no feminino relegadas ao olvido, nos séculos anteriores. No bojo de uma plêiade de veteranas, em que se destaca Lygia Fagundes Telles, emerge na escrita de alguém como Márcia Denser a ousadia dos temas, ostentando a sexualidade feminina, mostrando a mulher que abre caminho no torvelinho cheio de ciladas da metrópole, contestando o poder masculino.
Diversidade cultural. Exige exame mais detido, devido à voga internacional, uma tendência que guarda afinidades com o romance histórico, sem com ele confundir-se: é a saga da imigração. Nos anos 20 e 30, o Modernismo ocupou-se do recém-chegado contingente italiano, que vincou o tecido sociocultural, sobretudo em São Paulo. Desde então, pudemos ler ficção que fala da chegada e da acomodação dos espanhóis (Nélida Piñon), dos judeus (Moacyr Scliar), dos árabes (Raduan Nassar, Milton Hatoum). Aguardamos mais aportes, quando verificamos a existência de etnias relevantes já enraizadas mas quase sem voz literária, como a japonesa.
Há muito a fazer, mas da valia da empreitada falam tanto os resultados obtidos entre nós quanto a literatura de língua inglesa, com o que já soube extrair de situações de expatriamento e de fricção interétnica, a exemplo dos sul-africanos, que brilharam no registro do apartheid. Por seu lado, os norte-americanos elaboraram todo um ciclo de romance da imigração, enquanto os ingleses fizeram o processo do colonialismo.
Cabe observar que, na atualidade, esta tendência é uma das mais atraentes para o público do exterior, na figura do romance étnico, que a crítica rotula indevidamente de "pós-colonial", última moda da indústria cultural cosmopolita, na qual se insere Cidade de Deus, de Paulo Lins. Resultam best-sellers em linha de montagem: basta entrar numa livraria para encontrá-los às dezenas e às centenas. Uma leitura mesmo sumária mostra que giram em torno de uma ou mais cenas centrais de brutalidade escabrosa, o enredo devotando-se a encaminhar um suspense que aí encontra seu clímax e desenlace. Em seu sadismo básico, tal cena tem em mira atiçar o voyeurismo do leitor, ao mesmo tempo que degrada ainda mais os nativos.
Há que refletir sobre o seguinte: essa literatura étnica oferece aos brancos dos países ricos o exotismo a que aspiram. Para reassegurá-los de sua supremacia, são-lhes servidas as peripécias de facínoras mestiços: o exotismo é não só africano e asiático mas também brasileiro. Assim, os países periféricos fazem literatura e cinema "de exportação", ou seja, exportam matéria-prima colonial a nível simbólico.
Se o assunto for a adaptação dos desterrados, o território se situará nos enclaves de estrangeiros de pele escura nos países ricos. Para os demais, o cenário comum é o torrão natal, sempre exótico - Oriente Médio, nações africanas, Índia e Paquistão, Brasil.
Ampliando o âmbito. A evolução do jornalismo vem expulsando da página impressa profissionais veteranos, especialmente aqueles mais ligados ao campo cultural, que então empregam seus talentos em programas de televisão, em revistas eletrônicas ou no biografismo.
Este novo biografismo propriamente nacional - já que o antigo constava sobretudo de traduções - começou como resgate da crônica da esquerda, dizimada pela ditadura militar que se implantou por golpe em 1964. Sua matriz estilística pode ser rastreada em dois outros gêneros: de um lado o memorialismo, tal como foi praticado por Pedro Nava, de outro o romance-reportagem de José Louzeiro e Percival de Souza.
As biografias ora escritas expressam a urgência de urdir o relato dos tempos próximos, enquanto o recuo azado à historiografia pode demorar a se instalar. O fato de algumas terem se tornado best-sellers foi uma benesse a mais. Tais obras quase se transformam propriamente em ficção, mantendo todavia uma voz neutra e objetiva, mais próxima do jornalismo, não escondendo seu parentesco com a crônica. Os mestres do gênero são Fernando Morais e Ruy Castro, com inúmeros seguidores.
Acrescente-se que são bem menos sisudas que as biografias oficiais, em geral panegíricas, ou as teses. Descartam uma certa solenidade, típica do gênero; em contrapartida, por vezes acolhem versões fantasiosas, pouco comprováveis. Mas o fato de seus autores serem jornalistas, mestres de uma escrita fluente e vivaz, sem dificuldades de leitura, além de incorporar técnicas da ficção como o monólogo interior e o flashback, ou ainda a reconstituição puramente imaginária de diálogos, tende a tornar indistintas as fronteiras entre os dois domínios.
O êxito de vendas e as altas tiragens que tais livros alcançam obrigam à cogitação de que seu condão possa se beneficiar de ainda outro ingrediente da literatura. De fato, parece ter migrado para o biografismo aquilo que tornava atraente a ficção, ao privilegiar um herói e os anos de sua formação, e que acabou por desaparecer, quando as vanguardas tenderam a eliminar o enredo. Dessa maneira, a ficção abria as comportas para a vivência vicária, preenchendo funções psicológicas e sociais valiosas, cujas virtualidades parecem ter-se refugiado hoje nas modalidades biográficas. Enquanto isso, nos catálogos das editoras aumenta sem cessar o número de biografias.
Vejamos de quem trata essa numerosa produção. Em primeiro lugar, e disparado, confirma-se a posição fora do comum que a música popular ocupa na vida dos brasileiros: a maior frequência é de figuras ligadas a essa área: Noel Rosa, Pixinguinha, Luiz Gonzaga, Elis Regina, etc., etc., etc. Em segundo lugar, os holofotes iluminam a cena política: Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Marighella, Lamarca, Fernando Henrique Cardoso, Lula. Em terceiro lugar, num gênero em que o monopólio da autoria cabe aos jornalistas, estão os próprios jornalistas, seguidos por personalidades de palco ou tela: Assis Chateaubriand, David Nasser, Roberto Marinho. Sem contar as inúmeras que têm surgido nas novas e apressadas coleções que focalizam gente de telenovela. Constituem exceções as obras sobre alguém menos bafejado pela mídia, e fora desses três grupos, como por exemplo um grande escritor, romancista ou poeta.
É curioso que, em suma, dê para vislumbrar uma nova divisão do trabalho, quando se verifica que professores universitários escrevem ficção e jornalistas escrevem biografias.
* * *
Ao que tudo indica, uma maior compreensão dos romances e contos brasileiros atuais exige uma análise dos contextos tanto nacionais quanto internacionais. Sendo ainda necessário levar em conta, por ser fenômeno recente em nosso país e por transformar as relações de força internas a esse campo, a eclosão da biografia enquanto desdobramento da prosa literária.