Literatura vai de menos 1 a 40 graus
09 de setembro de 2011 | 0h 00
Ignácio de Loyola Brandão - O Estado de S.Paulo
Bem interessante. Enquanto a Flip foi dominada pelo escritor português walter hugo mãe, conquistando homens e mulheres, a Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, que continua sendo o maior evento do Brasil e da América Latina, girou em torno do talento e do carisma de outro português, Gonçalo Tavares. Tranquilo, simples, ele foi "comendo" todo mundo pelas beiradas, como se diz por aqui.
Na mesa sobre identidade, literatura e cultura na globalização, foi o único a fazer um depoimento atual, consciente, lúcido, ao contrário do celebrado (e decepcionante) Luiz Costa Lima, que se julga em altíssima conta e desprezou a Jornada e os participantes dormindo no palco, diante de 6 mil pessoas, e dando um depoimento pífio. Ao acordar, atrapalhou-se com suas anotações, disse que as tinha esquecido no hotel. Não tinha nada a dizer. Ensaísta à antiga que fala em linguagem hermética, vazia. Plateia monumental, professoras e estudantes, 18 mil crianças na Jornadinha, ouvindo e conversando com autores infantis. Ninguém bate Passo Fundo. Mauricio de Sousa dominou a cena, crianças de todo o Brasil o conhecem, adoram.
Neste momento há pelo Brasil dezenas de feiras (acaba uma, começa outra) e bienais e encontros. Saí de São Joaquim da Barra, interior de São Paulo, onde a prefeita Maria Helena Borges Vannuchi, obstinada e interessada em cultura, insiste em manter uma feira de livros com gente de primeira linha, e parti para Passo Fundo (-1°C na abertura da festa e vento minuano varrendo), norte do Rio Grande do Sul. Segui para o Piauí, para o terceiro Salipa, Salão Literário de Parnaíba (40°C à sombra), na boca do maravilhoso delta que separa aquele Estado do Maranhão. Hoje estou na 2.ª Filmar, Feira Literária de Marechal Deodoro, ao lado de Maceió. O sol come. Livros e literatura por toda a parte. Segunda-feira desço ao interior do Paraná para falar nos Sescs de Cascavel, Pato Branco, Fernando Beltrão e Foz do Iguaçu.
Em São Joaquim da Barra, a pamonha deliciosa e delicada, vendida num duas portas em frente da Feira, me provoca água na boca. Duas equivalem a um jantar. No Piauí, doce Estado, há o arroz Maria Isabel, o Capote, o queijo de coalho, a caranguejada. Em Passo Fundo, há a gastronomia dos Biazis, Alcir e Lisete, secundados pelo Serafim Lutz, com saladas inventivas, pernis, massas, filés e picanhas, costelas, matambres, num estilo sulino afetuoso. Alimentar com qualidade mil pessoas é tarefa de competentes. Sentar-se à mesa servida pelo garçom Otavio é privilégio. Com seus cabelos brancos e sabendo tudo, faz você parecer o mais VIP dos clientes, seja VIP ou não. E o que é VIP, afinal? As refeições no Clube Comercial eram no fim de noite, com conversas, papos cabeça, fofocas, informações, vinhos, todos juntos. Esse é o diferencial da Jornada, aglutina pessoas, momentos em que todos se juntam. Os irmãos Caruso, Chico e Paulo, cartunistas e músicos, estão na mesa com Gonçalo Tavares e Affonso Romano de Sant"Anna. Edney Silvestre, um dos mais procurados pelos leitores, juntava-se a Tatiana Salem Levy e à professora Maria Esther Maciel. Marcia Tiburi, filósofa, conversava com Peter Hunt, enquanto Eliane Brum juntava-se a Rinaldo Gama, que foi o único que se preparou convenientemente com uma bela fala para a mesa da comunicação do impresso ao digital. O comer é o momento em que todos se juntam, em lugar de se espalharem em busca de restaurantes espalhados pela noite afora.
A mesa final de Passo Fundo, formação do leitor contemporâneo, provocou incêndio. Alberto Manguel irritou-se com a inglesa Kate Wilson, amável mulher, que levou um projeto de livros em computador, em tablets, ainda em fase de implantação e discussão. Manguel se acha o dono da verdade do livro em forma de livro. Tablets, e-books, iPads são dignos da excomunhão. Arrogante, destratou aos gritos o americano Nick Montfort: "Não tenho e-mail, não uso computador". Para ele significam a deformação do leitor, não uma das formas para se conseguir sua formação. Crente de que é uma grande pessoa, guardião do livro em papel, Manguel partiu com patadas para cima da inglesa que, todavia, sabe espanhol, e respondeu à altura. Manguel, que vem escrevendo e reescrevendo os mesmos livros, tem de encontrar, urgentemente, as portas do século 21, desembarcar neste milênio, e ser mais gentil, admitir que a informática veio para ficar. Uma anedota circulou pela Jornada. Dizem que Manguel foi leitor de Borges. Ao fim de cada leitura, Borges acentuava: "Leu, pode ir embora, não me dê nenhuma opinião". Ao menos, a argentina Beatriz Sarlo, figura exponencial, estava na mesa, deu o tom de grandeza, ao lado de Affonso Romano.
O que importa é que literatura, misturada a música, informática e teatro, está sendo discutida em todo o País. Nunca, como hoje, houve tantas feiras e eventos em torno do livro, leitura, formação de leitores. Discussões, debates e buscas de caminhos. A Jornada de Passo Fundo chegou aos 30 anos, milhares de professores passaram por ela, milhares de crianças. A Jornada é a única que não se esgota assim que termina. Aí é que ela começa, com a multiplicação de ideias, conversas, aprendizados, vindos das oficinas, seminários, cursos, aulas paralelas, infinitas, atualizadoras. Recomeça quando acaba. Para culminar, premiou-se João Almino, grande autor com o seu Cidade Livre. O Bourbon Zaffari é o maior prêmio literário privado da América latina. Diplomata de carreira, autor por paixão, Almino levou um susto com o tamanho da Jornada e voltou à Espanha apaixonado.
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