sábado, 23 de maio de 2009

VICIOSO KADEK

Pensava farto, pastoso, às vezes em trechos alongados: se às Tuas costas, meu Deus, eu pudesse me fazer, apagar a Tua imagem e de cima de um todo-mim entender minha completa potencialidade desde o meu existir. Menos farto: igual a todos eu queria ser se pudesse, atuar como todos. Pensava bonito: pedra sob lua baça. O meu amor no teu que passa. Colinas, pássaros, teu momento, meu passo. Gasoso Kadek, olhando através da testa dos outros, por isso todos se riam cada vez que olhava pensante, cada vez que bebia como todos o branco-alegria nacional, pinguço se fazia como todos, e delicado um entender de dentro de boca mole mas muito prudente soletrava: assim tu morre, Kadek, pinguço e pobre como todos, igualzinho sim.

Antes matemático, psicólogo, espiou a curva de Moebius muitos anos, viveu prensado nela, horas pensando, também eu não tenho lado de dentro e de fora, e depois: tenho?

Quis arredondar-se, grão, e não escurecer com a palavra seu estar aqui, gargalhada de todos quando passava, foi ouvindo e alguma vez tentou anotações futuras sobre a metafísica da risada: riem-se porque Kadek estando aqui, passando, pensa também, e alguma coisa à sua volta se enche de brilhos, de luminescências, estilhaços, e passo fosforescente entre as gentes do bar. Se me perguntam Kadek, tu passa e não diz nada? Respondo tentando não pensar: eu te devoro o mundo se me deres um revolver mudo. Risadas. Ou isto: só subi a montanha porque desejava tua impossível cama. Risadas. Ou isto: somos ateus com Deus. Muitas risadas. Pensava summum malum é esse meu viver pensante, essa pedantocracia, esse estético vazio, ético tentou atos políticos, ético Kadek redimensionando “a coisa”, chupava de Sartre “a coisa”, mas dizia: digo coisa para não dizer lixo, ditadura, então minha gente, “a coisa” corrói, empedra, suja, embrutece, suprime, lixa tua criatividade, adormece, ensombra, letargiante corrosiva coisa, te arranca a alma, senhores senhoras “a coisa”...

Pegou dez anos e seis meses, muita enrabação, muita pancada, toma aí pestilento, a coisa é isso aqui, e a rodela de Kadek estremecia eletrizada, os bagos finos pendiam agora inchados, matemático é? repete aí dois mais dois é vinte e quatro. Repetia. Vício foi se fazendo de só ser comido pelos rombudos de farda, os botões duros cutucando-lhe as nádegas, mas nem por isso largou o outro vício de pensar beleza, de relembrar: é melhor estar sentado do que de pé, deitado do que sentado, morto do que deitado.

Todo Zen, Kadek desejou que a morte viesse, esfarrapada, bêbada, patível o mais possível, ao lado, um louco, lhe dissesse: chi, Kadek, tu não morre, ta difícil. Foi deitando amortado, o olho tentando o além outro lado, pediu a Jesus que não lhe surgissem palavras, que morresse muito ético, nada estético, olhou o de cima cinzento sem nuvens, nem gaviões, nem pardais, pensou perfeito para a morte de mim, a cabeça virou quase encostada ao ombro, viu bosta de gente a um metro do seu corpo, repetiu: obrigado Jesus, mais que perfeito para a morte de mim, deitado pobre anônimo agora no esturricado capim, muito igualzinho a muitos, ia dizer infindáveis obrigado quando o olhar subiu para o cinzento sem nuvens outra vez, e viu o pássaro. Trincou a língua para não dizer beleza, adelgaçou a vida, mas encolhido poetou entre babas: alado e ocre pássaro da morte. Totalmente diferenciado, então morreu.

 Hilda Hilst


Ficções, Ed. Quiron, São paulo, 1977. ( pp. 21-22).

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