sábado, 23 de maio de 2009

GESTALT

Absorto, centrado no nó das trigonometrias, meditando múltiplos quadriláteros, centrado ele mesmo no quadrado do quarto, as superfícies e cal, os triângulos de acrílico, suspenso no espaço por uns fios finos os polígonos, Isaiah o matemático, sobrolho peluginoso, inquietou-se quando descobriu o porco. Escuro, mole, seu liso, nas coxas diminutos enrugados, existindo aos roncos, e em curtas corridas gordas, desajeitadas, o ser do porco estava ali. E porque o porco efetivamente estava ali, pensá-lo parecia lógico a Isaiah, e começou pensando spinosismos: “de coisas que nada tenham em comum entre si, uma não pode ser causa da outra.” Mas aos poucos, reolhando com apetência pensante, focinhez e escuros do porco, considerou inadequado para o seu próprio instante o Spinoza citado aí e cima, acercou-se, e de cócoras, de olho-agudez, ensaiou pequenas frases tortas, memorioso: se é que estás aqui, dentro da minha evidência, neste quarto, atuando na minha própria circunstância, e efetivamente estás e atuas, dize-me porque. Nas quatro patas um esticado muito teso, nos moles da garganta pequeninos ruídos gorgulhantes, o porco de Isaiah absteve-se de responder tais rigorismos, mas focinhou de Isaiah os sapatos, encostou nádegas e ancas com alguma timidez e quando o homem tentou alisá-lo como se faz aos gatos, aos cachorros, disparou outra vez num corre gordo, desajeitado, e de lá do outro canto novamente um esticado muito teso e pequeninos ruídos gorgulhantes. Bem, está aí. Milho, batatas, uma lata de água, e sinto muito o não haver terra para o teu mergulho mais fundo, de focinhez. Retomou algarismos, figuras, hipóteses, progressões, anotava seus cálculos com tinta roxa, cerimoniosa, canônica, limpo bispal Isaiah limpou dejetos do porco, muito sóbrio, humildoso, sóbrio agora também o porco um pouco triste estragando-se nos cantos, um agrado-ternura nos dois olhos, e por isso Isaiah lembrou-se de si mesmo, menino, e do lamento do pai olhando-o: immer krank, parece, immer krank, sempre doente parece, sempre doente, é o que pai dizia na sua língua. É doença não é Hilde? Hilde sua mãe, sorria. Ach nein, é pequeno, é criança, e quando ainda somos assim, sempre de alguma coisa temos medo, não é doença Karl, é medo. Isaiah foi adoçando a voz, vou te dar um nome, vem aqui, não te farei mais perguntas, vem, e ele veio, o porco, a anca tremulosa roçou as canelas de Isaiah, Isaiah agarrou-se, redondo de afago foi amornando a lisura do couro, e mimos e falas, e então descobriu que era uma porca o porco. Devo dizer-lhes que em contentamento conviveu com Hilde a vida inteira. Deu-lhe o nome da mãe em homenagem àquela frase remota: sempre de alguma coisa temos medo. E na manha de um domingo celebrou esponsais. Um parênteses devo me permitir antes de terminar: Isaiah foi plena, visceral, lindamente feliz. Hilde também.

Hilda Hilst

Ficções ("Pequenos discursos e um grande"), Ed. Quíron, São Paulo, 1977. (pp. 6-7).

Um comentário:

  1. Esse conto me lembrou a poesia concreta e aqueles testes psicológicos que utilizam formas indefinidas para que a pessoa-alvo diga o que ali vê, fundamentados na Gestalt, a teoria que dá título ao texto. A mim me parece que tanto a Gestalt, como a Poesia Concreta e o poema de Hilda Hilst trabalham com a idéia da relação entre o todo e as partes, seja por meio das formas, das palavras ou das palavras que indicam as formas. O trecho "Escuro, mole, seu liso, nas coxas diminutos enrugados, existindo aos roncos, e em curtas corridas gordas, desajeitadas...", por exemplo, que se remete a formas indefinidas fora do conto (que poderiam estar relacionadas a vários objetos e seres), inserido em um contexto, juntamente com outras passagens até mesmo semelhantes, ganha um sentido específico, simboliza o porco e ajuda a construir o enredo. Cada trecho do conto, separadamente, poderia levar-nos a entender algo que, na verdade, não pertence ao desenvolvimento do texto, devido às "formas" abstratas descritas.

    Juliana L. dos Santos

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Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea

Estudando os contistas pós-utopicos ou as novas formas
da Literatura Brasileira.