domingo, 24 de maio de 2009

APELO

Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.

Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.

Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.

Dalton Trevisan

Mistérios de Curitiba. Editora Record - Rio de Janeiro - 1979, p. 73.





Um comentário:

  1. Professor, por favor me corrija... mas, ao ler esses contos contemporâneos, não consigo me desligar das mesmas impressões que tinha quando lia uma Clarice Lispector, um Machado de Assis ou até uma Cecília Meireles...

    Por mais que a literatura atual esteja fragmentada/objetiva adequadando-se à nossa vida automatizada (cheia de zappings), ainda me parece que os textos levam à reflexão das entrelinhas, pois os assuntos (pelo menos os que li aqui) estão ligados aos fragmentos da vida cotidiana a que qualquer leitor está sujeito.

    Às vezes, me parece que o leitor precisa refetir/pensar muito mais, pois tem que imaginar o que pode ter acontecido (antes/depois), a psicologia dos personagens, etc.- e isso tudo faz com que um único leitor tenha várias opções de interpretação - todas ligadas à própria relidade.

    Há uma sensação de que o leitor pode se desligar do antigo conceito: "tenho que descobrir/entender o que o autor quis dizer?" uma vez que a interpretação usa de base a própria experiência de vida (cria-se um texto/conto próprio que, ao meu ver, não seria possível se não houvesse algo para se refletir).

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Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea

Estudando os contistas pós-utopicos ou as novas formas
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