sábado, 23 de maio de 2009

TEOLOGIA NATURAL

A cara do futuro ele não via. A vida, arremedo de nada. Então ficou pensando em ocos de cara, cegueira, mão corroida e pés, tudo seria comido pelo sal, brancura esticada da maldita, salgadura danada, infernosa salina, pensou óculos luvas galochas, ficou pensando vender o que, Tiô inteiro afundado numa cintilância, carne de sol era ele, seco salgado espichado, e a cara-carne do futuro onde é que estava? Sonhava-se adoçado, corpo de melaço, melhorança se conseguisse comprar os apetrechos, vende uma coisa, Tiô. Que coisa? Na cidade tem gente que compra até bosta embrulhada, se levasse concha, ostra, ah mas o pé não agüentava o dia inteiro na salina e ainda de noite à beira d'água salgada, no crespo da pedra, nas facas onde moravam as ostras. Entrou em casa. Secura, vaziez, num canto ela espiava e roia uns duros no molhado da boca, não era uma rata não, era tudo o que Tiô possuía, espiando agora os singulares atos do filho, Tiô encharcando uns trapos, enchendo as mãos de cinza, se eu te esfrego direito tu branqueia um pouco e fica linda, te vendo lá, e um dia te compro de novo, macieza na língua foi falando espaçado, sem ganchos, te vendo, agora as costas, vira, agora limpa tu mesma a barriga, eu me viro e tu esfrega os teus meios, enquanto limpas teu fundo pego um punhado de amoras, agora chega, espalhamos com cuidado essa massa vermelha na tua cara, na bochecha, no beiço, te estica mais pra esconder a corcova, óculos luvas galochas é tudo o que eu preciso, se compram tudo devem comprar a ti lá na cidade, depois te busco, e espanadas, cuidados, sopros no franzido da cara, nos cabelos, volteando a velha, examinando-a como faria exímio conhecedor de mães, sonhado comprador, Tiô amarrou às costas numas cordas velhas, tudo o que possuía, muda, pequena, delicada, um tico de mãe, e sorria muito enquanto caminhava.

Hilda Hilst

Ficções, ("Pequenos Discursos. E um Grande") São Paulo, Quíron, 1977.

3 comentários:

  1. A primeira impressão é assustadora. Ainda estou assimilando o texto para poder dizer se é um típico caso de mediocridade (o camarada tem coragem de vender a própria mãe) ou se é questão de sobrevivência (faço este sacrifício agora para poder te dar um fututo melhor). "A mim me parece" (como diria o mestre Juarez)que a segunda opção é mais viável, mas preciso interpretar melhor.

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  2. É um texto assustador, porque pensamos na situação como algo que poderia ser real. Quer dizer, neste mundo tão frio, sem sentimentos, sem respeito, será que uma pessoa seria capaz de vender a sua própria mãe? Ainda mais quando ela seria a única coisa que esta pessoa possui?
    Até onde vão a ambição e o materialismo? Quer dizer, ele queria ter algumas coisas, mas não tinha dinheiro e também não tinha nada para vender...daí veio a brilhante idéia de vender a própria mãe. Fantástica idéia, ainda mais quando se percebe, no final do texto, que a mãe sabe que vai ser vendida e, ainda sim, vai nas costas do filho, caminhando com alegria, porque sabe que vai ajudá-lo a conquistar seus bens tão desejados.

    Fernanda Patucci

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  3. O texto em um primeiro momento me chamou a atenção pela mescla de descrições, ações, falas e reflexões da personagem principal, de uma forma que eu ainda não havia visto: ao mesmo tempo tudo está misturado, mas cada coisa, no conjunto, toma seu lugar nessa espécie de gradação, mecanismo que, para mim, traz à tona o sentido geral do texto.

    Além disso, a temática me lembrou muito o poema "O bicho", de Manuel Bandeira, principalmente no tocante ao trecho "...num canto ela espiava e roia uns duros no molhado da boca, não era uma rata não, era tudo o que Tiô possuía...", que é semelhante aos versos: "O bicho não era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato.". No entanto, o texto de Marcelino Freire vai mais além que o de Bandeira, pois a mãe de Tiô não é somente vista como um animal (devido à busca irracional pela sobrevivência pela falta de recursos disponíveis), mas também como um objeto que serve como produto de troca. Dessa forma, o ser humano não somente deixa sua racionalidade de lado quando a situação não é humana, como passa a se ver somente como mais uma peça da sociedade, que pode ser negociada - vendida, comprada - e descartada quando não mais tiver utilidade, o que possui relação com nossa contemporaneidade, em que coisas como atos de violência, por exemplo, têm se tornado cada vez mais parte da "normalidade".

    Juliana L. dos Santos

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