segunda-feira, 16 de abril de 2012

A literatura como risco



Luiz Costa Lima

É possível a um relato novelesco tematizar a idiotice contemporânea sem se converter ele mesmo em idiotice? Mantida ao final da leitura do segundo livro de André Sant'Anna, "Sexo" (Sette Letras), a pergunta supõe que saibamos sua resposta: não.

"Sexo" é uma denúncia feroz, mas eficiente, realizada ao nível mesmo da linguagem, da imbecilização róseo-eletrônica com que se encerra o milênio. Mas que se entende por realização ao nível da linguagem? Embora creia sabê-lo, nada me garante que saiba dizê-lo. Começo, pois, pelo título deste artigo. Ao chamá-lo a literatura como risco, afirmo que tratarei de uma experiência literária de extrema ousadia. Devo acrescentar: sua ousadia começa por aparentemente nada dever ao que se reconhece como literário. Uma amostra de seu começo: "As caixas de som, No TETO DO ELEVADOR, emitiam a música de Ray Conniff. O negro, diante da porta pantográfica, fedia. A gorda, que pisava no calcanhar do negro, fedia. O negro fedia a suor. A gorda fedia a perfume Avon.



O ascensorista, de bigode, cochilava. O Executivo de óculos Ray-Ban" etc. O vocabulário é intencionalmente pobre, as frases, intencionalmente lineares, os personagens, rasos, as expressões, semelhantes às das vozes que, cotidiana e televisivamente, martelam nossos ouvidos. Cada história leva a alguma cama.

Lentes gigantescas
Como o leitor não considerará "Sexo" equivalente a um dos tantos pornôs apreciados pelas editoras? Sim, é possível. E não fará mal algum que o engano de leitores aumente sua vendagem: para ser eficaz, a crítica à sociedade de mercado há de passar pelo mercado. Se esse mergulho no inferno é pouco provável para o ensaio e altamente improvável para o ensaio teórico, é passível de suceder na prosa novelesca. A plasticidade da literatura permite que ela assuma usos não literários. Mas como a literatura não se descaracterizaria se, de início, "Sexo" renuncia à identificação literária? Sumariamente, porque a linguagem banalizada é sujeita a lentes que a agigantam.

Essas lentes têm a propriedade de converter o que refinadamente se chama(va) "topoi" em inequívocos clichês. Os clichês acompanham o corte transversal na sociedade. A maneira mais direta de verificá-lo consiste em alinhar os tipos que seriam os personagens. O negro que fede e a loura que fede a perfume barato pertencem a escalões baixos da sociedade, assim como as secretárias louras e bronzeadas estão em escalão intermédio, diferentemente daquele em que se encontra o jovem casal meio hippie, por sua vez não idêntico ao do executivo de óculos Ray-Ban, dos executivos de gravatas com tal ou qual combinação de cores, daquele outro, descontraído, que usa roupas jovens e tem um carro importado. Estes se integram em escalão elevado, mas não tão elevado como o diretor de uma multi ou o negro "pop star", que, "naturalmente", não fede.

Não há novidade em nada disso: em cada escalão, reconhece-se a classificação das agências de publicidade classes C, B, B+, A. Cada um usa clichês, faz piadas, frequenta lugares e aspira parceiros sexuais e "climas" diferenciados. Nossa sociedade é tão visivelmente desigual que não se poderia dizer que há aqui alguma descoberta. Onde pois estaria a lente de aumento e porque os tipos são verdadeiros clones? Por efeito de um duplo dispositivo: quer os tipos tenham ou não tenham nome próprio, seguem sempre um figurino. Os clichês se congelam em padrões. Assim o jovem descontraído não dirigirá seu importado para o mesmo tipo de motel que a loura gorda; e o negro que fede nem sequer pensará em alugar um quarto de motel. Obedecer a um padrão, tanto mais rígido porque não imposto, significa não ter nome.

O nome próprio é um mero cacoete. A identidade é a do segmento social em que cada um está. Claro que, desigual, a sociedade não é imóvel. O negro que não fede, que é um astro pop, que fuma a maconha superior que cultivara em sua própria fazenda, já fora um borracheiro que fedia. Em troca, o adolescente que cultiva gostos não estandardizados apenas se prepara para sua breve integração.

A este dispositivo se agrega um segundo: cada tipo acumula progressivamente novos clichês, que passam a fazer parte de sua designação, de modo que a referência a cada um supõe a repetição da carga acumulada.

O dispositivo vai além da designação dos clones e se expande ao nível das frases ou mesmo dos períodos. Passam assim a haver verdadeiros clones-gêmeos, como os dois jovens executivos, cuja "individualidade" se limita à diferença das cores de suas gravatas listradas, que têm noivas igualmente louras, que preferem os mesmos filmes, que lêem os mesmos artigos da mesma revista etc.

Os clones-gêmeos são induzidos aos mesmos erros, que levam suas noivas a romperem com eles e, finalmente, a se casarem cada uma com o ex-parceiro da outra.

O que chamamos de dois dispositivos não atualiza o que, no vocabulário nobre-clássico, se chamava paródia? Sem dúvida. Só que a paródia é aqui tão gigantescamente ostensiva que o nome se torna impróprio. Precisamos de uma expressão direta para o universo cru. "Sexo" é o pôster sem retoques, cuja ampliação revela os grãos de uma sociedade imbecilizante. Mas a imbecilização por si não é capaz de manter uma sociedade. É preciso que essa tenha um eixo que, imbecilizante, não se confunda com o seu produto. Que eixo, pois, tem a sociedade, cujo microcosmo serve de matéria para "Sexo"?

Seu título já o diz. O que antes se chamaria erotismo se converte em culto, industrialmente estimulado, do pau e da vagina. Essa ossatura é tão una que dela não escapa nem o quarentão de Ray-Ban, nem o psicanalista que, enquanto lê Freud, pensa na jovem vendedora da butique de roupas jovens. Mas um elemento não afina com a ossatura, e a dela é potencialmente desagregadora: os clones dos escalões mais baixos são atraídos pelo sagrado que não está nas cogitações dos demais. A igreja a que aderem os domestica, ensinando-lhes bons modos e não condenando a sexualidade livre entre os fiéis. Assim fazendo, seus "bispos" favorecem a ordem social, não são incomodados e asseguram seu bem-estar. Por que então pensar que tal religioso é potencialmente desagregador?

A afirmação remete à teoria do sagrado que René Girard desenvolvera em "La Violence et le Sacré". Girard tomava como ponto de partida o que chamava o "desejo mimético" -em vez de o desejo ser definido pela atração por um objeto, ele se configuraria em razão da existência de um rival, no desejo. O rival é, ao mesmo tempo, admirado e odiado. Na medida em que esse mecanismo se estende pela sociedade, ela é ameaçada por uma violência indiscriminada. As sociedades arcaicas teriam aprendido a conjurá-la por meio da escolha de uma vítima expiatória, sobre a qual se concentraria toda a violência da sociedade.

O sacrifício da vítima, de sua parte, era justificado em razão de um sagrado, cuja sede de sangue seria aplacada pela imolação da vítima. Em suma, o sacrifício constituiria a "boa violência", aquela que simultaneamente eliminaria a violência indiscriminada e satisfaria o deus que a instilara nas criaturas. Aqui está a questão.

A sociedade contemporânea elege como vítima por excelência o pobre feio e velho. Em vez, contudo, de ser ela uma vítima que condensa e neutraliza a violência indiscriminada, ela assume o caráter de o excluído.

No vocabulário corriqueiro, é um "loser", o perdedor, a que se contrapõe a escala dos vencedores. Por isso mesmo, o "sagrado" contemporâneo interessa apenas aos excluídos. É certo que seus administradores procuram um "re-ligare" que favoreça a ordem social. E esta aceita a nova "religião" enquanto ela desarma os perdedores. De qualquer modo, os vencedores ignoram tal sagrado e adoram apenas o sexo indiscriminado. Em termos de Girard, vivemos o momento avançado da "crise sacrificial", aquele em que a violência indiscriminada ou já explodiu ou está em vias de explodir. Seria esse o germe da fratura contra a sociedade imbecilizante? Ao se ampliar em pôster gigantesco, "Sexo" converte o pornô em denúncia.

Luiz Costa Lima é crítico, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifície Universidade Católica-RJ e autor de “Vida e Mimesis”. Ele escreve mensalmente na seção “Brasil 500 d.C.”




Domingo, 2 de janeiro de 2000. Folha de S. Pauluo Mais! [ +brasil 500 d.C.]


[Resenha do livro Sexo, de André Santana]

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