UM PROTAGONISTA atormentado por
demônios pessoais entra num ônibus. Ele descreve para si todos os
objetos e cenas que observa, como se estivesse andando de ônibus
pela primeira vez. Ao tomar um assento, medita sobre as propriedades
do assento e faz, novamente para si mesmo, uma colocação
inteligente.
Alguém toma o assento ao lado, e
ele medita sobre isso. Aquele conjunto de fatores, os objetos, as
cenas, a pessoa ao lado, evoca no protagonista imagens de seus
demônios pessoais. Embora os demônios sejam antigos, a reflexão
que faz sobre eles no instante seguinte parece nova e perspicaz ao
protagonista.
Ele desce do ônibus e descreve o
chão pela primeira vez. A partir de agora, quando caminhar, ele não
descreverá mais o chão. O protagonista elege alguns elementos da
cena para descrevê-los sob uma nova ótica. Fica claro que essa nova
ótica é fruto direto dos demônios pessoais do protagonista, que
vai enxergar a avenida, os pontos de ônibus e outros objetos
corriqueiros a partir deste prisma, o que por sua vez pode indicar
que os demônios pessoais, embora antigos, tenham atingido um estágio
crítico ou pelo menos passado por alguma mudança em sua
configuração.
Há um breu e o protagonista está
no café, bebendo café, pensando sobre café, mas na verdade é tudo
um desvio de atenção, ele está mesmo é atormentado por seus
demônios. As próprias reflexões que faz sobre o café e o gosto do
café e sua temperatura e outros aspectos do café indicam isso. Na
verdade há outra pessoa conversando com o protagonista, e agora
percebemos que ela estava no banheiro durante o episódio do café. A
conversa gira em torno dos demônios pessoais do protagonista, e
provoca nova reconfiguração em como o protagonista percebe estes
demônios. Ele é o centro absoluto do universo, e quando a outra
pessoa vai embora, ela deixa de existir.
Há algo de sábio no caminhar lento
do protagonista quando ele deixa a mesa, mas não se sabe o que é,
tampouco ficará claro. O novo estado de espírito provocado pela
conversa também é indefinido, mas o protagonista sente necessidade
de descrever mais uma vez para si a avenida, os pontos e um ou outro
evento corriqueiro que vão enriquecer a reflexão que ele fará a
seguir. De fato, o protagonista consegue coadunar a conversa, a visão
que tinha de seus demônios pessoais, a avenida, a pessoa ao lado no
ônibus e o café numa reflexão concisa, pertinente e irônica. Ele
fica, por um instante, satisfeito, e medita sobre isso.
Um barulho interrompe o estado de
espírito do protagonista. Ele vê uma repórter ruiva safadinha, um
negão policial de piça descomunal e dois outros policiais sem
nenhuma característica digna de nota. O protagonista ainda não
sabe, mas esse episódio irá alterar ainda outra vez a maneira como
percebe seus demônios pessoais. Naquele momento, porém, ele está
ocupado em observar o negão policial da piça grande e a repórter
safadinha transando, enquanto os outros policiais assistem. Numa
tentativa de tirar sentido do episódio, ele irá invocar as mesmas
imagens que usou anteriormente, sem sucesso.
O episódio não será explicado, e
o protagonista continuará caminhando sem que saibamos o verdadeiro
grau de intimidade entre o negão, a repórter e os policiais, e sem
que tomemos conhecimento de outros detalhes práticos, como quantas
pessoas estavam observando a cena, se a polícia interveio, se a
repórter notou a maneira como o protagonista a observava, se ele
saiu logo depois ou se continuou olhando, se virou para trás. Há
outro breu, e não sabemos se a interrupção foi de minutos ou de
anos, uma vez que o protagonista se pôs novamente a descrever cenas
banais do cotidiano como se as visse pela primeira vez.
Chove na avenida, ele pega um ônibus
para se proteger e uma série de coisas acontece, todas elas
alterando um pouco a maneira como o protagonista encara seus demônios
pessoais. Eventualmente ele deixa de existir.
Conto,
de André Conti - FSP 28/09/2011 -IMAGINAÇÃO - PROSA, POESIA E
TRADUÇÃO
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