domingo, 8 de abril de 2012

Conto, de André Conti





UM PROTAGONISTA atormentado por demônios pessoais entra num ônibus. Ele descreve para si todos os objetos e cenas que observa, como se estivesse andando de ônibus pela primeira vez. Ao tomar um assento, medita sobre as propriedades do assento e faz, novamente para si mesmo, uma colocação inteligente.
Alguém toma o assento ao lado, e ele medita sobre isso. Aquele conjunto de fatores, os objetos, as cenas, a pessoa ao lado, evoca no protagonista imagens de seus demônios pessoais. Embora os demônios sejam antigos, a reflexão que faz sobre eles no instante seguinte parece nova e perspicaz ao protagonista.
Ele desce do ônibus e descreve o chão pela primeira vez. A partir de agora, quando caminhar, ele não descreverá mais o chão. O protagonista elege alguns elementos da cena para descrevê-los sob uma nova ótica. Fica claro que essa nova ótica é fruto direto dos demônios pessoais do protagonista, que vai enxergar a avenida, os pontos de ônibus e outros objetos corriqueiros a partir deste prisma, o que por sua vez pode indicar que os demônios pessoais, embora antigos, tenham atingido um estágio crítico ou pelo menos passado por alguma mudança em sua configuração.
Há um breu e o protagonista está no café, bebendo café, pensando sobre café, mas na verdade é tudo um desvio de atenção, ele está mesmo é atormentado por seus demônios. As próprias reflexões que faz sobre o café e o gosto do café e sua temperatura e outros aspectos do café indicam isso. Na verdade há outra pessoa conversando com o protagonista, e agora percebemos que ela estava no banheiro durante o episódio do café. A conversa gira em torno dos demônios pessoais do protagonista, e provoca nova reconfiguração em como o protagonista percebe estes demônios. Ele é o centro absoluto do universo, e quando a outra pessoa vai embora, ela deixa de existir.
Há algo de sábio no caminhar lento do protagonista quando ele deixa a mesa, mas não se sabe o que é, tampouco ficará claro. O novo estado de espírito provocado pela conversa também é indefinido, mas o protagonista sente necessidade de descrever mais uma vez para si a avenida, os pontos e um ou outro evento corriqueiro que vão enriquecer a reflexão que ele fará a seguir. De fato, o protagonista consegue coadunar a conversa, a visão que tinha de seus demônios pessoais, a avenida, a pessoa ao lado no ônibus e o café numa reflexão concisa, pertinente e irônica. Ele fica, por um instante, satisfeito, e medita sobre isso.
Um barulho interrompe o estado de espírito do protagonista. Ele vê uma repórter ruiva safadinha, um negão policial de piça descomunal e dois outros policiais sem nenhuma característica digna de nota. O protagonista ainda não sabe, mas esse episódio irá alterar ainda outra vez a maneira como percebe seus demônios pessoais. Naquele momento, porém, ele está ocupado em observar o negão policial da piça grande e a repórter safadinha transando, enquanto os outros policiais assistem. Numa tentativa de tirar sentido do episódio, ele irá invocar as mesmas imagens que usou anteriormente, sem sucesso.
O episódio não será explicado, e o protagonista continuará caminhando sem que saibamos o verdadeiro grau de intimidade entre o negão, a repórter e os policiais, e sem que tomemos conhecimento de outros detalhes práticos, como quantas pessoas estavam observando a cena, se a polícia interveio, se a repórter notou a maneira como o protagonista a observava, se ele saiu logo depois ou se continuou olhando, se virou para trás. Há outro breu, e não sabemos se a interrupção foi de minutos ou de anos, uma vez que o protagonista se pôs novamente a descrever cenas banais do cotidiano como se as visse pela primeira vez.
Chove na avenida, ele pega um ônibus para se proteger e uma série de coisas acontece, todas elas alterando um pouco a maneira como o protagonista encara seus demônios pessoais. Eventualmente ele deixa de existir.


Conto, de André Conti - FSP 28/09/2011 -IMAGINAÇÃO - PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

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