Filmes de Páscoa
Shame' é um dos filmes
do ano. Há muito o cinema não mostrava a intransponível solidão
de um homem
1. Brandon é um
viciado. Não em drogas, não em bebida, nem sequer em pastilhas
socialmente aceitáveis. O negócio dele é sexo.
O leitor sorriu com
essa possibilidade: sexo é vício que não mata ninguém. E a
ciência médica tem dúvidas sobre isso. "Dependência sexual"
será uma compulsão patológica ou a melhor forma de aliviar a
consciência da mulher traída?
Deixemos de lado essas
discussões. Voltemos a Brandon. No início de "Shame",
filme de Steve McQueen, ele está deitado sobre uma cama. Tronco
despido. Pele branca. Rosto pálido, magro, seco. Lençóis muito
azuis.
McQueen, o diretor, é
também artista plástico. O plano não é inocente: uma evocação
perfeita de um Cristo nas suas mortalhas, como os maneiristas o
pintaram repetidamente. Aquele homem está morto. Difícil saber se
haverá ressurreição.
Existe uma sequência
do filme que exprime esse óbito -e peço desculpa aos leitores por
revelá-la aqui (os interessados podem sempre saltar alguns
parágrafos): acontece quando Brandon, o supremo predador sexual, não
consegue ter relações com uma colega de escritório.
A sequência vale o
filme porque é, no duplo sentido da expressão, um "turn off".
Os dias de Brandon são o avesso desse fracasso: prostitutas, orgias,
encontros casuais em bares -o homem é um garfo insaciável. Tão
insaciável que a pornografia e a masturbação servem de aperitivo e
sobremesa para os pratos principais.
Só que Brandon falha
naquele prato. A razão é tão simples e trágica que qualquer
admiração adolescente por ele morre ali, na cama: a moça era a
única mulher com quem Brandon tivera uma sombra de envolvimento
emocional.
Jantaram antes.
Conversaram trivialidades. Beijaram-se, acariciaram-se. E, quando
finalmente chegam aos finalmentes, há um olhar trocado entre os dois
-um olhar de desejo, sim, mas sobretudo de vulnerabilidade- que acaba
com o nosso garanhão.
Ele se afasta, cobre o
rosto e sente vergonha, a vergonha de que fala o título. Não a
vergonha de ter brochado -Brandon encarrega-se, logo a seguir, de
contratar uma profissional para mostrar que ainda é homem.
Mas nós, testemunhas
de tudo, sabemos que ele não é. E que a vergonha maior é esta
mesma: a vergonha de ser incapaz de estabelecer com qualquer ser
humano uma ligação substancial.
Essa incapacidade será
amplificada pela irmã de Brandon, que chega a Nova York e instala-se
no seu apartamento por uns dias. Sissy é o avesso do irmão:
envolve-se muito, sente muito, magoa-se muito.
Brandon não gosta do
estilo. Não por se preocupar com a irmã -isso é pedir muito para
quem deixou atrofiar a linguagem básica da afeição. Mas porque a
irmã devolve-lhe o reflexo da seu incomensurável vazio. "Você
me encurrala", grita, na noite em que a expulsa do apartamento.
Brandon precisa do seu espaço imaculadamente vazio.
"Shame" é um
dos filmes do ano. Porque há muitos anos o cinema não mostrava, de
forma tão sem piedade e adulta, a intransponível solidão de um
homem.
2. Michael Fassbender,
em "Shame", é um prodígio de representação dramática
que Hollywood, na sua temporada de prêmios, não foi capaz de
suportar. Mas existe um lugar "ex aequo" para Michel
Piccoli em "Habemus Papam".
Sou espectador de
Piccoli há vários anos e só ele me faria assistir a um filme de
Manoel de Oliveira (no caso, "Vou Para Casa", em 2001).
Em "Habemus
Papam", Piccoli é o cardeal Melville, eleito papa no conclave,
que, na hora de apresentação aos fiéis, é acometido por um pânico
paralisante.
Piccoli é magistral
nessa combinação de medo, tristeza e doçura infantil. E o filme de
Nanni Moretti, contrariamente ao que foi escrito na Europa, não é
um ataque à igreja -ou, mais amplamente, ao cristianismo.
Arrisco mesmo dizer
que, ao filmar a fragilidade de um homem sobre quem os seus pares (ou
o Espírito Santo?) colocaram tão ciclópica tarefa, Moretti
realizou uma obra cristã por excelência.
"Pai, por que me
abandonaste?", teria suspirado Cristo nos momentos finais da sua
agonia na cruz.
Se ao filho de Deus foi
permitido um tal momento de fraqueza, por que não a um mero filho de
homens?
João Pereira Coutinho
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