segunda-feira, 17 de março de 2014

Respostas de Alcir Pécora (Folha de São Paulo - 23-2-2014)

Respostas de Alcir Pécora

Professor de teoria literária da Unicamp e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp)
É possível apontar tendências da produção literária contemporânea?
Acho que a produção é bem dispersiva e pouco marcante, em qualquer tendência
que se observe. O que mais existe é, por assim dizer, um genérico de literatura, que
se expande muito, em várias direções, inflaciona a vida de signos, mas não tem
caráter decisivo como experiência ou como experimento.

Quais seriam suas principais qualidades e deficiências?
Já pela resposta anterior, estou mais preparado para falar dos defeitos. Na poesia,
há predomínio do gosto evocativo, sentimental, sentencioso e generalizante, pois
se trata mais de uma "ideia geral" (esse horror, como dizia o Eduardo Coutinho),
de um clichê confessional e de intimidade do que de experiência. Na prosa, há
muita narrativa sobre narrativa, que refere livros e vidas dos autores célebres, as
quais funcionam como piscadelas cúmplices para o leitor amigo capaz de
identificar as referências.
Ou seja, resumindo, na poesia, a praga é o kitsch, falta de fibra e de objetividade;
na prosa, o romanesco ralo, batido, com remissões ostensivas ao "mundo dos
livros" e à cultura de fachada.
Nos livros melhores- justamente os que se apresentam como exceções às
tendências –, permanece o compromisso com o novo (pois este é uma exigência
invencível do próprio campo da literatura) e com a verdade (com questões levadas
a sério, como experiência de viver e pensar o real).

A Feira de Frankfurt e os programas da política do livro mantidos pelo
governo (bolsas de tradução, bolsas de criação, criação de festivais)
trouxeram resultados significativos para a produção artística?
Esse tipo de iniciativa, à qual acrescentaria as festas e os prêmios literários cada vez
maiores e mais comuns, têm efeitos eventuais para a profissionalização do escritor
e para o incremento do mercado livreiro. Ou seja, pode favorecer quem faz da
literatura um negócio, mas os resultados mais comuns se resumem à publicidade

em favor de alguns autores de umas poucas editoras, o que pode gerar um cânone
de ocasião, por assim dizer, tirado da manga para um evento oficial e finito ali
mesmo.
A meu ver, a produção artística, em termos de nível médio, só é realmente afetada
pela qualidade do sistema educacional do país.
A perspectiva de aceitação no mercado exterior norteia de alguma
forma o tipo de literatura que se está produzindo? O jovem autor
escreve pensando no exterior?
"Jovem" já é uma categoria do negócio e não da literatura: trata-se de colocar
novos produtos na praça identificados a um novo público consumidor. Como
categoria do negócio, ela vai aonde vai o negócio, e, portanto, é crível a figura desse
"jovem" em busca de um padrão que vença no "exterior".
Mas duvido um pouco dessa abertura do exterior para a literatura brasileira. Essa
possibilidade deve permanecer um nicho de poucos, justamente aqueles
agenciados por grandes editoras, ou então de uns poucos autores já conhecidos,
entre eles o famigerado Paulo Coelho. Acho que o momento de curiosidade maior
pelo Brasil já passou. Ásia e África parecem estar mais na cena desse mercado
"exótico" do que o Brasil.
Existe uma "globalização" dos temas?
Eu li outro dia um livro brasileiro que imitava o Dan Brown, assim como li outros
que imitavam o Vila-Matas. Me lembro daquele projeto "Amores Expressos", que
colocava autores nacionais em cenários estrangeiros e buscava dar-lhes rumos
internacionais. Assim, há qualquer esforço de globalização de temas, mas na
prática ocorre apenas a adoção de estereótipos literários internacionais, os quais
acabam suscitando pouco interesse desse mercado globalizado.
O que o mercado globalizado da literatura pede, em geral, é o contrário do que já
pode ter por si mesmo. Isto é, pede o pitoresco e exótico locais, ou então narrativas
com testemunhos de experiências de minorias marginalizadas ou situadas em
zonas conflagradas e pouco conhecidas. Na primeira alternativa, Jorge Amado é
mais "globalizado" do que qualquer autor brasileiro contemporâneo que eu
conheça. Na segunda, há pouca coisa a ser oferecida pelo Brasil, pois a exclusão
social é grande a ponto de testemunhos de experiência direta raramente alcançar
versão escrita, quanto mais literária. Quando ocorre, dá-se muito mais na música
popular ou no documentário jornalístico que na literatura. Até a moda praiana,
produzida na favela, tem mais sentido de encaixe no mercado globalizado que a
literatura brasileira.

A literatura contemporânea inova em algum sentido? Ela renova
formas, gêneros? Como?
A literatura contemporânea, no Brasil ou fora dele, raramente inova, pois vive um
impasse radical. De um lado, já não consegue fazer a epopeia da construção
nacional, pois a circulação internacional do capital minou as bases do Estado-
nação; de outro, não cola como valor estético suficientemente duradouro, pois seu
programa, geralmente associado a reivindicação de direitos, tende a ser imediatista
e relativo a grupos restritos.
Acho que a Teoria tem ocupado a centralidade cultural que era da literatura. Os
grandes nomes da cultura, hoje, com rara exceção, são de pensadores, teóricos,
não de escritores.

Existe ainda no Brasil literatura "regional"? A origem geográfica é
determinante na literatura que se produz? 
Sinceramente não sei. Talvez haja. O Rio Grande de Sul, em especial, preza muito a
sua face gaucha. Sei que, em diferentes universidades do país, há disciplinas sobre
literaturas regionais. Seja como for, o mercado de livros é muito centralizado. S.
Paulo e Rio monopolizam a produção, a circulação, a distribuição etc., de modo
que, de alguma maneira, o Brasil é grande, mas vive encolhido.
Não apenas o "regional", mas a maior parte do que é produzido fora desse eixo fica
fora do acesso público nacional. É uma perda tremenda. Uma produção menos
determinada pelas modas editoriais, mais vincada em experiências reais seria
sempre um respiro, mesmo que não chegasse a ser grande. Nisso, não apenas a
música, mas o cinema tem se saído melhor: Pernambuco, por exemplo, tem uma
produção séria e de alcance internacional.
No que toca à segunda questão, a origem geográfica pode ser determinante ou não,
mas a literatura não admite determinação a priori, de nenhuma espécie. Por
exemplo, já que falamos em Pernambuco: Cabral ser pernambucano pode ser
importante para a sua literatura, mas é consideração que apenas podemos fazer a
partir da forma já efetivamente produzida. Antes, não.

A literatura produzida atualmente no país é política?
Está muito longe da política, embora, por vezes, se finja oportunisticamente de
política: li vários livros recentes que referem guerrilhas ou sequestros, mas elas
aparecem apenas como fait divers. Política ali é apenas uma tentativa de criar uma
aura séria ou histórica para a diversão fácil.



Em literatura, não existe característica determinante a priori. Não é como uma
língua já existente, ou uma variante de fala prevista nela. Ser política ou atribuir-

lhe qualquer essência particular apenas pode ser relevante depois que a forma
particular é efetuada. Antes disso, a literatura apenas pode ser pensada como
intervenção imprevista. Depois disso, quanto melhor ela for, mais ela é
autodeterminada em seus próprios termos.


A identidade nacional era, de uma forma ou outra, um tema sempre
presente em nossa ficção. Isso se perdeu? Essa questão deixou de ser
central?
Não é apenas questão de "identidade" nacional – identidade era apenas uma das
possibilidades de pensar os acontecimentos vividos com relativa urgência. A
questão, até por volta dos anos 60/70, a forma literária era central na interpretação
do país, parecia central na criação consistente de uma comunidade imaginária que
respondia por ele ou por seus destinos. Hoje, essa urgência interpretativa perdeu
fôlego para a representação de um pequeno espetáculo de si, de grupos de leitores
ou de comunidades mais restritas, com gostos e perspectivas a priori homogêneos,
ainda que disseminados pelo mundo. Quero dizer, enfim, que não me parece que
seja na literatura, na linguagem da invenção, que se trava, hoje, a batalha das
contradições do real ou da busca de suas alternativas mais consistentes.
Essa centralidade obtida em decorrência do fortalecimento do estado-nação é um
ciclo terminado, em função mesmo do enfraquecimento do Estado-nação no
contemporâneo. Isto posto, não entendo que seja possível qualquer retorno à
situação histórica anterior, nem acho que nos cabe qualquer nostalgia da
brasilidade perdida. Cabe, sim, à literatura buscar descobrir uma nova centralidade
para si no cerne da vida social. É isso ou conformar-se a um papel lateral,
secundário na cultura.
A minha opção, pessoalmente, é pela relevância decisiva da literatura. Mas criar
uma nova centralidade implica, a meu ver, em tirá-la desse "entre-lugar" no qual se
reduz à expressão de grupos de semelhantes ou de próximos, ou à produção e
consumo de entretenimento pop, no qual a crítica e o compromisso com o novo
não têm papel.
Reforçar a crítica, capaz de formular critérios adequados de análise das obras em
particular, e considerar as obras sob pressão do legado cultural mais exigente são,
para mim, as melhores pistas para uma retomada de seu lugar de força na cultura.
A chamada autoficção, voltada para o próprio eu, para a própria
experiência, parece ser um dos mais fortes motes da produção literária
dos últimos anos. Alguns estudos apontam uma exacerbação da
subjetividade, que seria vista como um valor de autenticidade. Como
avalia essa questão? Quais implicações disso na literatura brasileira?
Em geral, a única autenticação no gênero que tem sido chamado de autoficção no
Brasil é a da vulgaridade: uma exposição despudorada de uma falsa subjetividade,
construída para consumo imediato e obsceno em larga escala.
Claro, falando genericamente, pode-se dizer que toda ficção é "auto", ou seja, toda
invenção se associa à produção de uma subjetividade (não à sua representação
inerte ou transparente), mas o que tenho lido na esfera do que se autonomeia de
autoficção está bem mais próximo da falsificação da experiência e da história como
espetáculo vulgar.
Como as formas de interação via redes sociais se manifestam na
literatura que se produz hoje?
Formalmente, talvez na ideia de capítulos em pedacinhos, de literatura em
fragmentos, como os scrapbooks de adolescentes americanos: esse é um dos
modelos populares de literatura hoje. Há também um modo de compor o livro
inteiro nessa disposição segmentada: um capítulo sobre uma coisa, outro sobre
outra, o terceiro sobre outra, até que ao final se juntam no mesmo enredo de
última hora. É uma espécie de fecho de editor: como os capítulos têm passinhos
curtos, os caminhos se articulam tarde demais, às pressas, fora do tempo
construído por eles.
Mas o pior da interação redes sociais-literatura talvez seja a ideia de se escrever
para próximos, de estabelecer contato entre "amigos". Nesses termos, é mínima a
preocupação com o domínio técnico da língua, do assunto ou com o rigor da
criação, o que implica demanda do novo, sem o que não há literatura. Por isso
mesmo, é nula a demanda crítica, e quando um crítico se apresenta diante da obra,
ele acaba por assumir a condição de "intruso", como diz o crítico italiano Alfonso
Berardinelli.
Talvez um termo de Tony Judt esclareça melhor o assunto, pois a literatura sob o
influxo das redes sociais está balizada por "subjetividades expandidas" mais do que
pelo esforço de criação de objetos novos, que resistem a uma interpretação já dada
e partilhada. Ora, um aparelhamento ostensivo de gente que deve necessariamente
concordar entre si, rezar a mesma missa dos pares, nada tem a ver com uma ideia
importante de literatura. Enquanto tal, ela é produção de um artefato basicamente
estranho, de assimilação difícil, de acontecimento único, de criação de uma forma
que suscita necessariamente um ato livre de juízo.
Existe uma desagregação do romance como forma convencional –pela
fragmentação, pela intervenção gráfica?
Embora a fragmentação exista, como já comentei antes, o gênero do romance
(equivocadamente totalizado pelo modelo do romance naturalista francês) sempre
foi uma forma livre, aberta a experimentações gráficas e ao que mais a prosa
admita. Na Itália, por exemplo, nunca houve esse modelo do romance realista
totalmente articulado entre si. Nas outras literaturas, dá-se igualmente o caso: de
Sterne a Machado, de Huysmans a Joyce, de Proust a Broch, o que neles pode ser
chamado de romance convencional?
Tendo isso em mente, não vejo grandes experimentações gráficas atuais - ao
menos, não no que signifique participação do experimento no cerne do romance –,
mas apenas formas decorativas do livro. Quer dizer, há muito livro decorativo, com
páginas em várias cores, com tipologia alternada e alterada, mas a narrativa
propriamente é linear, quadrada, escrita embora aos pedacinhos.
Antologias, coletâneas temáticas, seletas de escritores e outras
iniciativas que partem do mercado editorial são frutíferas? Beneficiam
a produção? 
São iniciativas úteis para a divulgação do trabalho deste ou daquele autor

desconhecido ou não, ou para dar acesso a peças consideradas mais importantes
de um autor, segundo determinados critérios estéticos ou outros. Mas nada disso
beneficia diretamente a qualidade da produção. Como poderia, quando a
divulgação é um ato isolado, um evento ocasional, descolado da formação do
leitor?
Repito o que disse antes: o procedimento eficaz a ser adotado para favorecer a
produção literária é a qualificação do sistema educacional do país. Pode não
garantir nenhuma obra-prima, pois esta não tem explicação, nem cumpre hora
marcada pra acontecer, mas é apenas a força do processo educacional que garante
o peso relativo da cultura no país.
As oficinas de criação literária, que abundam nos últimos anos,
"moldam" a literatura que se produz hoje?
No Brasil, acho que não. Essas oficinas não são tão correntes nem tão prestigiosas
como nos Estados Unidos, onde têm presença marcante nas Universidades e nos
estudos literários. Aqui, os cursos são oferecidos de maneira amadora, quase como
aulas particulares de reforço de redação.
Que espaço tem a poesia hoje, na produção e no mercado? Pode
ganhar mais espaço após o sucesso surpreendente da edição da poesia
completa de Leminski no ano passado?
O espaço é pequeno e dificilmente deixará de continuar pequeno. No Brasil,
evidentemente, a situação é muito pior que nos países europeus, uma vez que é
mínimo o tamanho do público com formação cultural bem sedimentada, apto a
interpretar diversos registros da experiência e da linguagem.
Leminski foi um caso isolado de ajuste de uma campanha publicitária altamente
profissional com uma poesia de viés pop, que casou bem com a internet e com as
sentenças de sabedoria prática e auto-ajuda para jovens. A melhor poesia de
Leminski não se reduz a isso, mas, no conjunto, é uma poesia que admite esse
recorte. Nesses termos, é mais um exemplo da facilitação geral que sinal de uma
mudança boa de rumos. 

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