sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Ypacaraí é aqui

Londres está cheia de porcos. Nas ruas, há bois boiando. E vacas que vão entrando pelas casas. É preciso fechar as cercas. Espantá-las da praça.
Falo, aqui, de uma Londres sul-americana. Onde a água, longe da Trafalgar Square, é pura lama. Poética. Como ir pela estrada, em viagem, e sentir cheiro de terra. Primitiva.
Foi o que eu fiz. Seguindo, de alguma forma, os passos do escritor paraguaio Augusto Roa Bastos (autor do clássico Eu, Supremo, morto em abril deste ano). Explico: Londres é Nueva London, vilarejo que conheci quando visitei o Paraguai em maio para participar da 2ª. Feira Internacional do Livro.
A saber: a comitiva ia parando. Até chegarmos à cidade de coronel Oviedo, onde a feira acontecia, a alguns quilômetros da capital, Assunção. Tudo uma vista parecida com o Nordeste do Brasil. Se a pobreza era física, era espiritual o calor humano. Temperatura: 28, à sombra.
Em 2003, fiz viagem semelhante a Bogotá. Foi por causa disso, inclusive, que me convidaram a voltar para mais uma reunião de escritores da nova geração. Esquecida. Aqui no Brasil faz tempo que não acontece um encontro similar. Uma comunhão de "los hermanos”. Quando acontecerá? Existe evento desse tipo no Chile e no Peru e na Bolívia. E no Brasil nadica. Nossa vocação é inglesa, sei lá. Francesa. Há quem tenha torcido a língua quando falei: "Estou indo ao Paraguai”. Por que não Paris? Portugal? Polônia?
Freqüento até velório, se for preciso. Para levantar defunto, recito um conto. Subo aos tamancos. Da Festa Literária Internacional de Parati até o Haiti, podem me chamar que eu vou. Pô! Que clausura é essa a do escritor? Na redoma? No chá da ABL, por que não servir um pouco de marijuana?
Chegamos. Almoçamos na casa do governador de Caaguazú. Como se aqui, um a um, fôssemos recebidos no palácio do Alckmin. Todas as honrarias à prosa e à poesia. Escritor é coisa importante, quem diria? Houve discurso de boas-vindas. E desabafos improvisados. Como o do poeta e embaixador equatoriano Francisco Suescum:
- Se não tomarmos cuidado, eles vão nos "borrar" do mapa.
Eles, os americanos. E os países ricos. O Brasil aqui incluído, fiquei com essa impressão. O Mercosul não existe. O que existe é desintegração. Velhas melodias em guarani. Um balé boliviano me fez chorar. Escondido. Somos mesmos intelectuais subdesenvolvidos. Lembrei do mercado editorial lá em Pernambuco. Um povo caduco a viver de UBE. E a publicar livros chinfrins. Quixeramobins e Tocantins. O Paraguai e sua terra vermelha me encheram de tristeza. Assim, Cuñataí.
Não quis dizer do meu drama para o escritor José Manuel Pérez, que me convidou. Ou para o organizador do evento, o obstinado poeta Fernando Pistilli. Ambos anfitriões de primeira. Eu é que já carregava comigo essa desilusão brasileira. Que a gente vai fingindo não existir. Porque somos teimosos. E vamos até o fim.
O negócio é simular um sorriso diplomático e ir atirando para todos os lados. Com os pés no teclado, haveremos de fazer a revolução. Seguindo o exemplo de Monica Bustos, em cujas mãos está o futuro fértil da literatura paraguaia.
Foi exatamente quando eu estava cansado de ver páginas empoeiradas e escritores que ainda posam de terno e gravata e autoras de alma penteada que Bustos me apareceu.
- Meu sobrenome, na verdade, é Busto. Mas coloquei um "S" para provocar.
Ela, uma jovem de 21 anos que me fez lembrar a gaúcha Clarah Averbuck. Acompanhada da avó, mostrava o seu Leão morto. Repito o nome: Leão morto. Eu disse: Leão morto. Um romanção de umas quatrocentas páginas (escrito aos 15 anos) que ela vendia e divulgava em uma das barracas.
"¿Qué se necesita para ser feliz?", pergunta ela no começo do primeiro parágrafo. Sem esperar pela resposta, é claro.
- Por isso eu mesma abri uma editora, a Cria Cuervos (por onde publicou, idem, o seu livro de contos Complexo de bustos).
Diz ela: "A gente cria urubus para depois eles pularem em cima da nossa carcaça".
É a luta, companheira.
Foi com a Monica Bustos que a feira me revelou o seu melhor frescor e me revigorou a esperança. Em quê? Voltei para o Brasil e fui direto à reunião do Movimento Literatura Urgente, a saber: manifesto assinado por mais de 180 escritores (www.literatura-urgente.com.br) que reivindica a definição de políticas públicas para o fomento ao trabalho de poetas, prosadores e ensaístas. Não se engane: aqui também precisamos, e muito, progredir. Feito o capim e a lama que alimentam os porcos e as vacas e os bois de Nueva London.
Logo ali, junto ao lago azul de Ypacaraí.
Marcelino Freire

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