segunda-feira, 1 de junho de 2009

Dez anos

     De dez em dez anos acontece uma desgraça na minha vida. Uma bomba relógio com precisão terrorista. Sempre perto do meu aniversário, sempre nas datas redondas. A última foi o mês passado, quando fiz cinqüenta anos.
     O telefone tocou e eu reconheci na hora.
     - Quem está falando? - Luís perguntou sabendo que era eu.
     - Com quem quer falar? - respondi sabendo que era ele.
     - A Alzira, por favor.
     - Não está me reconhecendo?
     - Claro que estou, como vai? - assim mesmo, como se nos falássemos a toda hora.
     De dez em dez anos Luís me procura.
     - Os primeiros cinqüenta já se foram, - ele disse tentando disfarçar a emoção - agora só falta metade.
     - Quem merece viver cem anos? - perguntei.
     Ele insistiu num encontro. Eu não queria. O que ainda havia para ser dito?

     Quando cheguei ao restaurante, ele já estava lá. Os cabelos mais brancos, as costas curvadas, Luís agora usava óculos. O mesmo homem elegante de sempre. Ele me abraçou e disse que eu não mudara nada nos últimos dez anos. Agradeci a gentileza e chamei-o de mentiroso. Sei bem o estrago que o tempo faz numa mulher. 
     Todo orgulhoso, ele contou do filho, que é médico e mora nos Estados Unidos. 
     - Fernando está com trinta anos, é cirurgião plástico. - De repente, tomado por uma vergonha repentina, mudou de assunto: - e você, ainda mora sozinha?
     - Que jeito.
     - Por que não arruma companhia? Sua casa é tão grande.
     - Minha solidão preenche a casa inteira. Ela fica até pequena.
     Luís deu risada do meu sarcasmo.
     - Você precisa de alguma coisa? - quis saber antes de nos despedirmos.
     - Eu estou bem, não se preocupe.
     Dois dias depois, Fernando me ligou dando a notícia da morte do pai.
     - Ele sabia que ia morrer? Estava doente? - talvez por isso tenha insistido tanto no encontro.
     - Doença nenhuma. Papai estava forte como um touro.

     Quanto tempo ainda viverei sem que o telefone toque e seja ele me dando os parabéns, achando que estou cada vez mais moça?
     E eu que pensei que, depois da morte de Marcos, nada mais me abatesse.

     Eu tinha quarenta anos quando perdi meu filho. Um caminhão entrou desgovernado no campinho de futebol e atropelou cinco meninos. Marcos foi o único que morreu.

     Quando Luís ligou para me cumprimentar pelo aniversário (ele só liga nas datas redondas) ficou sabendo da morte do filho que ele nem chegou a conhecer. Nunca lhe contei quem era o pai.
Neste dia, eu me lembro, ele estava muito feliz. Fernando acabara de entrar na faculdade de Medicina.
     Quando fiz trinta anos, Luís me procurou e nós nos tornamos amantes. O casamento dele com Maria Amélia não ia bem. "Você é a mulher da minha vida, a única que amei de verdade". Eu sempre soube disso. Nosso caso durou pouco. Terminamos sem que ele soubesse que eu estava grávida.
     Aos vinte, quando pensei que ele fosse me pedir em casamento, casou-se com Maria Amélia. "Ela está esperando um filho meu, me perdoa".
     Eu tinha dez anos quando Luís mudou-se para a minha rua.

Ivana Arruda Leite

2 comentários:

  1. este conto é INCRÍVEL.

    ivana, apesar de seu tema central ser basicamente o mesmo em quase todos os textos, tem estas sacadas incríveis. este conto, por exemplo é de uma ironia tamanha e este lance de ser 'atemporal' ou cronologicamente inverso (como um blog, em que fatos recentes aparecem no topo, antes dos mais antigos) não é novo, mas cabe aqui perfeitamente sem ser pedante. a mistura de diálogo e narração também é importante porque é como se autora parasse de falar para os personagens entrarem em cena, talvez como prova de que tudo aquilo aconteceu mesmo.

    deixando de lado a linguagem e indo pro campo da interpretação, eu gosto da cumplicidade dos personagens de ivana. mulheres desgraçadas, mas com humor aguçado, não consigo (nem quero) dissociar a imagem que tenho dela (ivana) das personagens que cria (neste caso, alzira) e sempre que leio um conto, imagino a casa dela, que tive o prazer de visitar uma vez. a cozinha, as facas nas gavetas, o telefone numa esquina da sala.

    e a última frase é de matar. é um choque. é um mistério pressupostamante revelado aos poucos, mas que surpreende, pelo menos a mim, pelo fato de ser uma história começada há décadas, cada um vivendo sua vida, mas como um laço que julgo ser mais fraternal ou passional talvez e não tanto amoroso, perdura até a morte de um, no 'fim' de sua vida, como se esta fosse a única forma de fechar este ciclo desta relação.

    .lucas guedes

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  2. Adorei a questão do blog, do cronologicamente inverso. Inicia num momento significativo na vida da personagem, até a morte de uma paixão/envolvimento marcante, e no recuo de sucessivas perdas (do amado, do filho, do amante, do possível noivo) chega ao encontro aos dez anos (fechando com melancolia e epifânica graça o mote do conto: o número dez). No centro das narrativas de Ivana está sempre esse desencontro amoroso, línguas, tempos, incomunicabilidade, desejo e solidão. Sua grande habilidade está narrar com simplicidade (aparente) instantes de mutação, como os instantâneos precisos de Cartier-Bresson, pontos luminosos (poéticos), que comovem e revelam o ser humano em graça e desgraça. Em Ivana o drama pessoal mais comezinho nunca é realmente banal.

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