O escritor brasileiro é homem e branco. Ele tem diploma universitário, mora no eixo Rio-São Paulo, tem 50 anos. O protagonista de seu romance é homem, branco, com diploma universitário, mora em metrópole etc. etc. Dos nossos autores, 36% trabalham como jornalistas. As profissões mais comuns dos protagonistas da literatura brasileira são, pela ordem, escritor, criminoso, artista, estudante e jornalista. As histórias se passam nas últimas três décadas.
Ou seja: o assunto da literatura brasileira é o escritor brasileiro e seu mundinho, sua juventude e atual meia-idade, reimaginadas dramaticamente. É o resumo curto e grosso da pesquisa feita pela professora Regina Dalcastagnè, da UNB. Analisou 258 romances de 165 escritores diferentes, dos últimos 15 anos, de editoras variadas. É mostra significativa. Rendeu um infográfico impactante.
Regina conclui que não há no campo literário brasileiro uma pluralidade de perspectivas sociais - nossos livros não incluem gente de várias cores, classes, religiões, idades. Bidu. É e sempre foi assim. A ausência mais escancarada em nossa literatura, personagens negros, tem razão bem concreta: não há negros nas redações, na academia, nas posições de comando do País.
Nossos livros não são mais discriminatórios do que nossa sociedade não ficcional. Em 56% dos romances, todos os personagens são brancos. A pesquisa crava: 36% dos escritores são jornalistas. Bem, tirando jornalista, poucos brasileiros têm português legível. Encaixar uma frase na outra, respeitar concordâncias, economizar nas vírgulas e tal. E Dashiell Hammett recomendou: escreva sobre o que você conhece. Donde que temos jornalistas escrevendo sobre jornalistas. Um bando de rato de redação se imaginando como herói: uma vez na vida, a notícia sou eu!
Bem, eu sou exatamente o perfil do romancista brasileiro, quase cinquenta, branco etc., e obviamente não quero ler sobre mim, nem em versão romantizada, e muito menos realista. Nem todo autor brazuca é jornalista, mas o fato é que os temas e abordagens se repetem. A pesquisa explica a desconexão de muitos, e a minha, com a literatura brasileira atual. Me recomendam este e aquele autor nacional. Compro, leio quinze páginas e despacho pro sebo, com exceções muito pontuais.
A pesquisa explica o meu, o nosso problema. Não é com o País de origem dos autores. É com o universo ficcional e existencial dos autores e personagens. Não queremos saber dos problemas de jornalistas e escritores profissionais, dos senhores letrados de classe média e meia-idade, suas neurinhas, fantasias e infidelidades. Simplesmente não é tão interessante assim. E pior ainda quando vira policial noir de butique, com direito a um assassino, uma garota de programa e um milionário assassinado. Sai pra lá, neurótico professor de literatura em Boston! Vade retro, safo repórter de jornal popular!
Ficção exige imaginação e encantamento; um tanto de história, outro de jornalismo; e variedade, hoje festins pantagruélicos, amanhã snacks para devorar aos nacos. Em todo lugar o gênero "problemas sexuais-existenciais da classe média intelectualizada" tem longa tradição. Na Europa e Estados Unidos, garante prêmios, convites para lecionar e confete em festivais literários. É o favorito de escritores que não vivem de escrever. Ganham a vida como professores, quase sempre. Quem sabe faz, quem não sabe ensina... não, sacanagem: tá cheio de professor por aí que manda muito bem. O problema é quando os escritores começam a escrever para impressionar outros escritores (e, aliás, isso vale para músicos, pintores, arquitetos e qualquer atividade criativa).
Escrever em tempo parcial não precisa ser problema. Muitos usam bem as conexões acadêmicas e mesadinhas variadas, de fundações, esse e aquele programa governamental etc. Aliás, falta de tempo e dinheiro para escrever frequentemente foi bem estimulante. James Joyce, para pegar o mais celebrado autor do século passado, criou Ulysses num miserê de dar gosto, exilado mundo afora, com uma mulher que zoava suas pretensões literárias, e dois filhos pequenos pra criar. Na outra ponta, a fábrica de best-sellers Stephen King pariu Carrie quando morava em um trailer e labutava como zelador, datilografando até altas horas, os nenês chorando.
No Brasil, literatura também é segunda profissão, ou hobby mesmo. Faça as contas: um autor ganha uns três reais por exemplar vendido, e as tiragens aqui raramente passam de 3.000 exemplares. Então, não importa muito sobre o que o escritor brasileiro vai escrever, e muito menos se vai escrever bem. Muito pouca gente vai ler. Dito isso, podemos fazer melhor. Escrever bem é técnica, e escrever divinamente é talento e suor, mas a prova dos nove é escrever sobre a realidade. A pesquisa de Regina explicita que o assunto da ficção brasileira é o umbigo do seu autor, um coroa diletante.
Não é problema localizado, mas talvez aqui seja um pouco mais agudo. Me parece que em todo lugar, cada vez mais os escritores estão escrevendo sobre seu mundinho particular, fantasias de aventura e consumo, revisitando seus livros e filmes e artefatos culturais prediletos. A cultura de celebridade instantânea da internet acentua o problema: vivemos escrevendo e lendo sobre devaneios narcisistas, não sobre a realidade. Boa parte do que passa por literatura é como essas fotos supostamente displicentes, mas cuidadosamente planejadas e retocadas, que as pessoas colocam em seus perfis no Facebook.
Hammett, padroeiro do escritor preguiçoso, estava errado. A literatura que importa não é sobre o que autor conhece, mas sobre o desconhecido - e sobre não conseguir desviar o olhar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário