domingo, 13 de março de 2011

Contos de Fernando Bonassi

PAIS E FILHOS

 

- Mãe... Por que tem tanto mosquito?
- Tira a mão daí.
- Se eu tirar vem mosquito, mãe.
- Tira a mão daí já!
- A senhora ainda tá brava com ele?
- Não, acho que não.
- Então por que a gente não tira ele daqui?
- Não sei...
- A gente podia pôr ele no quarto.
- Não. Não quero mais ele lá.
- Mãe... o papai não vai acordar?
- Não, acho que não.
(100 coisas)

094  paisagem com remédios

Na Baixada do Glicério um prédio inacabado foi conquistado por sofás velhos, encerados puídos, cachorros e pessoas vira-latas. Muito perto, o entreposto do Inamps bafeja uma fumaça de  remédios vencidos. Filas e filas de receitas médicas encardidas, empunhadas as orações. Gosmentos de vergonha das suas sujeiras, os engenheiros cobrem o Tamanduateí com placas de concreto. Deixarão correr uma autoestrada moderníssima por cima. Os meninos vão rachar a cabeça nessas pistas lisinhas. Quem viver verá na TV. (São Paulo – Brasil – 1993)

098 rodeio

Ezequiel voou parafusado. Quando estava de boca pro céu, as estrelas e as luzes da arena formaram um telegrama manchado nos seus olhos. Bateu chapado no chão. Ouvido apitando. Deu até vontade de rir...  Mas não é que o touro desceu com uma pisada tão forte que as costelas se esmigalharam por cima do coração?! Foi  menos que suspiro e mais que dolorido. Ele ainda levantou o chapéu e batendo a poeira das calças! Ezequiel, esse insistente... Os  braços valeram pra isso. Mas também só pra isso, porque ao cair de novo já foi de cara... e completamente morto. (Barretos – Brasil – 1996)

003 Turismo ecológico

Os missionários chegaram e cobriram das selvagens o que lhes dava vergonha. Depois as fizeram decorar a ave-maria. Então lhes ensinaram bons modos, a manter a higiene, e lhes arranjaram empregos nos hotéis da floresta, onde se chega de uísque em punho. Haveria uma lógica humanitária exemplar no negócio, não fosse o fato das índias começarem a deitar-se com os hóspedes. Seus maridos, chapados demais, não sentem os cornos. De qualquer maneira, todos levam o seu. Só mesmo esse Deus civilizador é quem  parece ter perdido outra chance. (Cuiabá – Brasil – 1995)

015 índios aprendem depressa

Índios não têm anticorpos ou cabides. Índios não acreditam que o sol vai nascer amanhã, necessariamente. Índios têm tesão na lua e dificuldades pra se matar, porque desconhecem nossa experiência no assunto. Índios pagam o dobro por uma calça Lee. Índios cozinham macacos e jogam a pele fora. Índios ficam fascinados com embalagens. Índios fazem cachaça de qualquer coisa. Índios fazem de tudo na frente uns dos outros e na hora que têm vontade... mas os índios aprendem depressa e, se antes davam suas filhas de presente, agora começam a cobrar por isso. (Cáceres – Brasil – 1987)

 076 êxodo rural

É uma cidadezinha. O comércio funciona na casa das pessoas. Por que abrir loja? Se troca arroz por porco-do-mato, macaco por camisa, uma família de rede por uma canoa de casca... O médico que não entender um pouco dessas ervas que crescem por aí nem precisa parar. Defender criança de enxame de marimbondos é o máximo de ação que os PMs podem encontrar. A gente tem dois. Em turnos de 12 horas. Sábado e domingo, também. Eles não se importam. Moram na rua de trás. É uma cidadezinha. “Zinha” mesmo... tanto que na primeira chance, por pior que seja, a turma se manda. (Sumidouro – Brasil – 1997)

Dez definições:

Verdade é uma opinião mais sensível num instante determinado. Mentira é uma opinião menos necessária por mais tempo. Arte é o que acontece, porém com algumas modificações pra quem não tem paciência de sair de casa e viver a sua própria vida. Diplomacia é uma boca-livre entre dois países críticos, seus smokings, uísques e dúvidas protocolares. Peixes são minerais ativos que rebolam dentro d'água. Moda é um vestido de uma noite. Família é um conjunto de pessoas que não têm dinheiro pra pagar, cada uma, seus malditos aluguéis. Deus é um pai ausente que nunca teve mãe. Mãe é uma gaiola com pé-direito bem grande, cercada de algodão por todos os lados. Vida é isso daqui mesmo, por incrível que pareça...3

Viatura

Armada até os dentes cariados dos ocupantes fardados e cheia de autoridade delegada, cruza a cidade em ruínas a viatura. Nos bairros chiques será vista apressada, trafegando pela esquerda, esnobando os importados mais velozes. Mas não se iludam os comunistas, que a revolução terá no camburão o cassetete que merece. E onde os faróis alcançam, penetrando recônditas periferias, abre as sirenes sobre nós, cidadãos civilizados por carteiras profissionais e salários criminosos (estes sim, nossas piores condenações). Aliás, quase mortos, quase porcos, acabamos no chiqueirinho.

Voz de prisão

Mãos pra cima! Você está preso em nome da lei. Tem todo o direito de ficar quieto. Qualquer coisa que você disser pode ser usada contra você. Tudo o que você disser será usado contra você. Se você não disser nada, seu silêncio será usado contra você. Se você se mover, seu gesto poderá ser interpretado como desacato à autoridade ou agressão. Se você ficar imóvel, sua imobilidade poderá ser interpretada como resistência à prisão. No distrito você poderá usar o telefone pra chamar advogado. Odiamos advogado no distrito que não seja o próprio delegado. O telefone do distrito não funciona.

Canção do exílio

Minha terra tem campos de futebol, onde cadáveres amanhecem emborcados pra atrapalhar os jogos. Tem uma pedrinha cor-de-bile que faz “tuim” na cabeça da gente. Tem também muros de bloco (sem pintura, é claro, que tinta é a maior frescura quando falta mistura) onde pousam cacos de vidro pra espantar malandro. Minha terra tem HK, AR15, M21, 45 e 38 (na minha terra, 32 é uma piada). As sirenes que aqui apitam, apitam de repente e sem hora marcada. Elas não são mais as das fábricas, que fecharam. São mesmo é dos camburões, que vêm fazer aleijados, trazem intranqüilidade e aflição.

Brasil, país do futuro

Um homem de marca-passo a microship usa celular e encomenda cocaína desde o seu 48 válvulas. A seis quilômetros do condomínio fechado, o dispositivo de ondas curtas sob a tampa do motor selado avisa a portaria, que prepara a segurança. Ao chegar, o proprietário é identificado por infravermelho e o primeiro estágio do portão abre-se velozmente. Fecha-se. O cartão magnético introduzido na fenda abre o segundo estágio. O homem entra, acompanhado pelas câmaras do circuito interno de TV até a porta de casa. A encomenda, 80% de pureza, chega 10 minutos depois.
 (São Paulo – Brasil – 1997) (Bonassi 2001: 48)

Escola

Viaturas circulando a meio pau. No mínimo um 32 pra cada 1,2 habitantes passados em revista. Pó, mato & pedra. Grades nas janelas. Cadeados nos portões. Armários arrombados (vazios). Portões de chapas 3mm com recheio de compensado de 15. Um mapa ultrapassado da velha Europa de orelha na parede. Dois Brasis com um só Mato Grosso feitos de papel crepom esmagado. Tabela periódica antes do lítio. Desconfiança é pouco. Cartaz do corpo humano (músculos). Os mais escrotos dizeres e desenhos entalhados nas carteiras, onde garotos e garotas pousam sonolentos (Bonassi 2000: 93).

O juiz

Tenho cargo. Tenho poder. Tenho a lei. Tenho sobrenome. Tenho motorista. Tenho manobrista. Tenho hérnia. Tenho datilógrafas. Tenho descontos. Tenho clientes. Tenho salário. Tenho crédito. Tenho ajuda de custo. Tenho verba de representação. Tenho segurança. Tenho saco pra tudo, desde que cifrado nos autos. Minha toga lavo escondido dos outros, entre  os meus iguais. Tenho o direito. Tenho presentes (não tenho passado). O futuro, ao Supremo pertence. Se me ofendo, meto um processo pra escapar disso tudo. Data vênia: quanto à justiça, favor reclamar com bispo comunista, ou exército golpista.

Definição de máfia

Máfias são compostas por grupos de pessoas, como qualquer família. Máfias são compostas por grupos de pessoas ligadas por interesses financeiros, como qualquer organização bancária. Máfias são compostas por grupos de pessoas ligadas por interesses financeiros, em questões de  vida e morte, como qualquer empresa de seguro-saúde. Máfias são compostas por grupos de pessoas ligadas por interesses financeiros, em questões de vida e morte, nas quais os diversos grupos existentes exercem seu poder por meio de extorsão e violência, como qualquer governo civilizado. 

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