segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O Globo: Resenha de ‘O homem sem conteúdo’, de Giorgio Agamben




O Globo: Resenha de ‘O homem sem conteúdo’, de Giorgio Agamben



Romero Freitas, no O Globo
O homem sem conteúdo (1970) é o primeiro livro de Giorgio Agamben. Dez ensaios compõem a obra, formando uma estrutura complexa a partir de motivos que se repetem e se sobrepõem, como numa composição polifônica. Os motivos, tomados em si mesmos, não são todos novos. O mais interessante no livro é a segurança no estilo (aos vinte e oito anos, Agamben domina totalmente a forma do ensaio) e a capacidade de articulação de materiais distintos.
Uma questão interessante que se coloca ao leitor, ao tomar contato com esse emaranhado de motivos, é pergunta pelo núcleo central da obra. Haveria, nessa partitura polifônica, um centro tonal? A resposta me parece ser positiva, pois a interdependência dos ensaios é no mínimo tão evidente quanto a sua exuberante diversidade temática. “Sem conteúdo” me parece ser a tonalidade central nessa composição. Pode-se dizer mesmo que essa expressão é mais do que uma parte em um conceito: ela é o próprio conceito. (Algo semelhante ao conceito de “sem expressão” – das Ausdrucklose – no ensaio de Benjamin sobre Goethe).
O primeiro ensaio (“A coisa mais inquietante”) retoma a crítica heideggeriana da estética enquanto ciência da subjetividade. Embora Heidegger não seja citado, é da “destruição da metafísica” que se trata quando Agamben cita Nietzsche, Hölderlin e Artaud a propósito da oposição entre arte como experiência desinteressada e arte como experiência vital. Kant teria dado expressão ao primeiro ponto de vista, ao definir o belo como “prazer desinteressado”. Nietzsche, na Genealogia da moral, zomba de Kant e contrapõe ao desinteresse estético a ideia de um interesse vital: o belo exprimiria essencialmente “uma promessa de felicidade” (como Stendhal havia dito). Ninguém sintetizou de modo mais claro essa crítica do distanciamento estético do que Antonin Artaud em O teatro e seu duplo: “O que nos fez perder a cultura foi nossa ideia ocidental da arte… À nossa ideia inerte e desinteressada da Arte, uma cultura autêntica opõe uma ideia mágica e violentamente egoísta, isto é, interessada”.
Em que pese o excelente ponto de partida para uma discussão estética (“arte como verdade” versus “arte como aparência” – uma oposição que reencontraremos, por exemplo, na crítica da Danto a Greenberg), Agamben negligencia três pontos importantes no que diz respeito a Kant e Nietzsche. 1) Kant, na sua Crítica da Faculdade do Juízo, não trata apenas da beleza como prazer desinteressado, do ponto de vista do espectador; ele também discorre explicitamente sobre o gênio como aquele que “dá a regra à arte” (§ 46), o que evidentemente corresponde ao ponto de vista do artista. 2) Também não é justo dizer que Kant ignora a questão do interesse vital da arte, pois, ao final de sua exposição, Kant define a beleza como “símbolo da moralidade” (§ 59). Pode-se certamente rejeitar o conceito kantiano de moralidade – por exemplo, em favor da ética de Espinosa – mas não se pode dizer, simplesmente, que Kant não articulou arte e moralidade. 3) Nietzsche, na Genealogia da moral, opõe de fato o desinteresse do espectador kantiano às experiências mais interessantes que os artistas têm com as obras (o exemplo de Nietzsche é o escultor Pigmaleão, que se apaixonou pela estátua que ele mesmo criou). Mas, caberia acrescentar, Nietzsche estaria de acordo com Kant quanto ao elemento de jogo que há na obra de arte. A arte é um jogo eticamente interessado, diria Nietzsche, mas ela permanece um jogo. Um jogo com aparências, no qual inclusive a distancia estética será valorizada (Cf. Gaia Ciência, §§ 54, 107, 299).
A oposição entre recepção e produção, entre o gosto e o gênio, é essencial nos três primeiros ensaios do livro (“A coisa mais inquietante”, “Frenhofer e seu duplo”, “O homem de gosto e a dialética da dilaceração”). No quarto (“A câmara das maravilhas”), as coisas se complicam um pouco (e ficam mais interessantes). Pela via da história cultural, Agamben procura se aproximar do tema “morte da arte”. O primeiro ensaio parecia fazer o elogio do produtor em detrimento do receptor. Agora, fica claro que os dois são as duas faces do mesmo “homem sem conteúdo”. “Sem conteúdo” poderia ser, antes, apenas o espectador kantiano, na medida em ele via na obra de arte apenas uma ocasião para o seu prazer estético desinteressado. Por contraste, a demanda de uma arte violentamente interessada nas questões vitais da existência parecia situar o artista num lugar além dessa posição burguesa ou decadente. Entretanto, a comparação entre a câmara das maravilhas (Wunderkammer) no pré-renascimento e a galeria de arte na modernidade lança uma sombra sobre a produção da arte moderna em geral, pois ela coloca em relevo o que se perdeu na “neutralização” ou “museificação” da arte na sociedade secularizada ou desencantada. Agamben cita um exemplo tomado de empréstimo a Huizinga: quando Dionísio, o Cartuxo, entra em uma igreja em que estão a tocar o órgão, ele é imediatamente arrebatado por uma experiência mística; seu êxtase não tem nada de “estético”, no sentido moderno do termo, pois nem lhe passa pela cabeça que essa experiência não seria possível sem o músico que executa a peça e sem o compositor que a criou.
Agamben retoma assim, de um modo original (pois parte de suas leituras de história da arte e da cultura), o tema hegeliano da autossuperação da arte. Se a arte é para nós “coisa do passado” (ein Vergangenes), como dizia Hegel nos Cursos de estética, é porque não temos mais com ela uma experiência ética imediata, como a que se percebe na história de Dionísio, o Cartuxo. Isso não significa que a arte morreu ou chegou ao fim. Significa, antes, que a arte tem na modernidade um desejo insaciável de ir sempre além de si própria, ultrapassando a sua própria essência (a representação do divino na sensibilidade) e criando um mundo fechado de formas autotélicas ou reflexivas, que se espelham numa progressão infinita. Tal é, em poucas palavras, a hipótese hegeliana sobre a arte moderna. Agamben retoma então a distinção entre o espectador e o artista, mostrando como ambos pertencem ao mesmo paradigma estético: ao artista que mergulha no jogo de espelhos da arte autônoma corresponde o espectador que contempla apenas imagens distanciadas do seu contexto vital.
A estética moderna oscilaria entre o Terror, que não pode ser representado na experiência, e a Retórica, que é onipresente no mundo cotidiano, mas já não pertence ao momento atual da história da arte. Forma e conteúdo já não remetem um ao outro. A unidade se desfaz, e, com isso, o espectador sem conteúdo se encontra com o artista sem conteúdo. Nas palavras de Agamben: “Como o espectador, frente à estranheza do princípio criativo, busca, de fato, fixar no Museu o próprio ponto de consistência, no qual a absoluta dilaceração se inverte em absoluta igualdade consigo mesma [...], do mesmo modo o artista, que fez, na criação, a experiência demiúrgica da absoluta liberdade, busca agora objetivar o próprio mundo e possuir a si mesmo. [...] Frente ao espaço estético-metafísico da galeria, um outro espaço se abre que lhe corresponde metafisicamente: aquele puramente mental da tela de Frenhofer, no qual a subjetividade artística sem conteúdo realiza, através de um tipo de operação alquímica, a sua impossível verdade”. Agamben refere-se aqui ao pintor Frenhofer, personagem de Balzac que pretendia produzir a obra de arte absoluta (um duplo perfeito da realidade, que se tornaria ele próprio real – como a estátua de Pigmaleão), mas que produziu apenas um amontoado caótico de cores e linhas, no qual apenas ele vê a imagem da perfeição pretendida. Eis, portanto, o destino da arte “sem conteúdo”: fruição “retórica”, desinteressada nas questões vitais, de um lado; criação “terrorista”, obcecada com o irrepresentável, de outro.

17/12/2012

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O africano, de JM Le Clézio



Todo ser humano é um resultado de pai e mãe. Pode-se não reconhecê-los, não amá-los, pode-se duvidar deles. Mas eles aí estão: seu rosto, suas atitudes, suas maneiras e manias, suas ilusões e esperanças, a forma de suas mãos e de seus dedos do pé, a cor dos olhos e dos cabelos, seu modo de falar, suas idéias, provavelmente a idade de sua morte, tudo isso passou para nós. 

Por muito tempo sonhei que minha mãe era negra. Inventei-me uma história, um passado, para escapar da realidade em meu retorno da África, neste país, nesta cidade onde eu não conhecia ninguém, onde me tornara um estrangeiro. Depois descobri, quando meu pai, na idade da aposentadoria, retornou para viver conosco na França, que o Africano era ele. Foi difícil admitir isso. Tive de voltar atrás, de recomeçar, de tentar compreender. Em memória disso escrevi este pequeno livro. 

O corpo. Tenho coisas a dizer deste rosto que recebi em meu nascimento. Primeiro, foi preciso aceitá-lo. Afirmar que não me agradava seria dar-lhe uma importância que ele não tinha quando eu era criança. Eu não o odiava: ignorava-o, evitava-o. Não o olhava nos espelhos. Durante anos, creio que nunca o vi. Desviava os olhos das fotos, como se alguma outra pessoa tivesse se posto em meu lugar. 




O Africano, de J. M. Le Clézio

Ferréz entrevista Bonassi

Dois excelentes escritores contemporâneos em diálogo

Fernando Bonassi

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Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea

Estudando os contistas pós-utopicos ou as novas formas
da Literatura Brasileira.