Chico e
Caetano ao mesmo tempo
A canção
morreu? Na linha evolutiva dos dois, ela mostra que apenas vive em
outra era
03 de
fevereiro de 2012 | 21h 30
Romulo
Fróes/ESPECIAL PARA O ESTADO
Muito tem
se discutido sobre uma possível crise da canção e da própria
música popular brasileira, mas penso ser esta uma avaliação
apressada e o erro está na observação do problema. A música
brasileira tem se renovado não mais somente pela composição, mas
principalmente por meio de uma experiência coletiva nova que se dá
através do acesso facilitado à tecnologia de gravação. É pelo
som que a música brasileira está se transformando. Através dos
trabalhos mais recentes de Chico Buarque e Caetano Veloso, vou tentar
identificar traços dessa renovação e o modo como cada um vem
lidando com esse problema.
Chico
(2011), o mais recente lançamento de Chico Buarque, faz parte de um
momento muito importante de sua discografia, em que incluo também As
Cidades (1998) e Carioca (2006). Entre a gravação destes dois, ele
concede a famosa entrevista a Fernando de Barros e Silva, em que
discorre sobre um possível esgotamento histórico da canção. As
músicas que compõem estes três álbuns parecem tomadas por este
pensamento.
Chico
inventa um personagem andarilho que aparece sempre na primeira faixa
de cada disco, como se a cada trabalho saísse por aí para topar com
as novidades do mundo. "Gostosa, quentinha, tapioca, o pregão
abre o dia, hoje tem baile funk, tem samba no Flamengo, reverendo no
palanque lendo o apocalipse (...)", os versos de Carioca, canção
que abre As Cidades, se desenvolvem sobre uma harmonia fendida que
distende a melodia até o limite da nitidez. É difícil cantá-la,
pois segue fluida, como que procurando seu prumo. E quando finalmente
o encontra, já é tarde demais para compreendermos o seu desenho.
Ao
iniciarmos de novo a melodia, não nos lembramos mais dela. Sem rima
aparente, a letra conduz o personagem num travelling desorientado
pela cidade. Dando liga a pessoas e acontecimentos distintos e sem
tentar compreendê-los, vai descrevendo uma cidade e um cotidiano
novos em sua música. Subúrbio, faixa que abre o álbum Carioca,
avança ainda mais em direção a essa outra cidade, vai ao "avesso
da montanha" onde "não tem brisa, não tem verdes-azuis,
não tem frescura nem atrevimento". Talvez espere encontrar
nesse outro Rio novos caminhos para sua canção. Em Querido Diário,
faixa que abre o disco novo, este andarilho adquire uma certa
melancolia, não se encontra mais em sua própria cidade, que anda em
contramão.
A
movimentação que Chico imprime a este personagem movimenta também
sua canção. Provoca nela um esgarçamento, em que a melodia é
muitas vezes esticada até sua quase desintegração. A ponto de
virar fala, mas ainda possível de ser cantada.
Sua obra
recente parece encontrar um novo caminho para a sua música, mas
encontra nele mesmo o adversário que dificulta sua plena realização.
Chico sempre manteve certo distanciamento (admitido por ele em mais
de uma entrevista) com a produção de seus discos. Talvez por isso
nunca alcançaram a importância de suas canções. Todos conhecem
Construção, poucos sabem dizer o nome de outras faixas que
pertencem ao disco que leva este título, um dos mais importantes de
sua carreira. Essa dualidade entre o compositor e o intérprete
permanece nos trabalhos recentes, pois se as canções parecem
apontar um novo caminho não só para sua obra, mas para a própria
canção brasileira, nos discos elas regridem ao escalonamento um
tanto simplista do seu produtor musical.
Luiz
Cláudio Ramos, seu arranjador desde 1989, parece orientado por uma
correção escolar, querendo consertar os 'defeitos' das composições
de Chico, como em Dura na Queda, um dos mais belos e estranhos sambas
de todo o seu repertório, escrito para Elza Soares e gravado por
Chico em Carioca. Na gravação de Elza, sua linda melodia desliza
como a personagem da canção, ‘desfila natural’ sobre uma
pulsação cambaleante, com seu tempo forte camuflado. A gravação
de Chico 'corrige' essa pulsação, revelando seu tempo forte e pondo
a canção literalmente no chão. Os arranjos escritos por Ramos
tendem ao fisionômico, enfraquecem as letras, numa tentativa de
tradução inocente e anacrônica, como acontece em Querido Diário.
Ao se
alcançar o verso "armou tocaia lá na curva do rio", na
busca de construir a imagem que a letra sugere, os instrumentos
produzem sons que emulam água, pássaros, vento. Às vezes, o título
é que determinará sua feição - dessa maneira, As Atrizes, faixa
de Carioca, recebe tratamento orquestral típico dos musicais de
cinema americano, numa redundância que nada contribui para a canção.
Não há enfrentamento ali, um samba é apenas isto, um samba, uma
valsa é uma valsa, um choro é um choro. Assim, Tipo um baião,
outra faixa de Chico, perde a dubiedade estampada no título, e é
finalmente transformada em um baião.
Francisco
Bosco escreve em seu artigo O Artista e o Tempo que Chico atingiu o
encontro perfeito entre forma e história e que soube manter e
desenvolver sua forma, a certa distância formal da história. No
mundo de hoje, talvez este distanciamento não seja mais possível em
um projeto de renovação. Caetano, por sua vez, sempre ligado ao
aqui e agora, quando parece ter simplesmente ignorado o presente,
penso que houve um certo desvio em sua trajetória. Eu me refiro ao
período de um pouco mais de uma década de colaboração com o
músico e maestro Jaques Morelenbaum.
Caetano
já disse que Morelenbaum fez com que perdesse muito do medo que
tinha da música. Talvez isso explique o movimento em direção a uma
produção mais sofisticada, de arranjos orquestrais extremamente
formatados e sem espaços para improvisação, negando aquele
saudável amadorismo sempre presente em sua obra. Longe dos
experimentos tropicalistas de Rogério Duprat, próximo do que fez
Dori Caymmi para Domingo (seu disco de estreia ao lado de Gal Costa)
e, por que não notar, dos discos de Chico Buarque, ainda que com
resultados muito superiores. Não por acaso seu canto se apura nesses
trabalhos, parece querer acompanhar o aprimoramento técnico de sua
banda. Discos que privilegiam o intérprete em detrimento do
compositor se sucedem. Caetano vinha numa evolução que se
configurava como um projeto de maturidade, quando esse processo é
interrompido.
Cê
(2006) e Zii e Zie (2009) trazem à cena um novo protagonista em seu
trabalho, o guitarrista Pedro Sá, um dos nomes mais importantes de
uma nova geração de artistas ainda pouco comentada. A banda montada
por Pedro Sá com outros talentosos músicos desta geração (Marcelo
Callado na bateria e Ricardo Dias Gomes no baixo), provocou uma
transformação na sua canção. Parece óbvia essa afirmação, pois
é claro que o som de um violão, uma guitarra, um violoncelo ou um
cavaquinho, cada um com sua característica, muda nossa percepção.
Mas não só o som do instrumento tem importância aqui. O modo como
ele é captado e a manipulação do seu timbre através dos inúmeros
equipamentos de um estúdio de gravação serão tão ou mais
importantes. Os músicos dessa geração discutem sobre pedais,
amplificadores, microfonação, válvulas, softwares de gravação,
instrumentos antigos, etc., tanto quanto propriamente de música.
A canção
de Caetano nestes dois discos foi influenciada por este comportamento
e é devido exatamente à nossa intimidade com sua obra que notamos
mais claramente uma transformação. Se compararmos, por exemplo, com
um de seus trabalhos mais celebrados, o álbum Transa, há de se
notar diferenças na sua relação com os músicos. Mais do que pelas
próprias canções apresentadas, a banda que gravou Transa parecia
influenciada pelo comportamento e pela música produzida naquela
época - era isso o que a motivava, na busca do som adequado às
canções. Com a banda Cê (nome com que batizou sua banda atual),
Caetano parece compor para o som que ela produz. Um som de rock, como
o de Transa, mas menos desbundado que os anos 1970, mais sombrio,
próximo de bandas como Pixies e Sonic Youth e que se mostrou
perfeito para a leva de canções carregadas de raiva e frustração
apresentadas em Cê.
Em Zii e
Zie, 2º disco gravado com essa mesma banda, os sinais de renovação
de Caetano ficam mais claros. Em Perdeu, que abre o disco, já é
possível notar uma novidade. A canção, rasgada por um riff de
guitarra, acompanhada em uníssono pelo baixo e pela bateria, confere
à melodia uma rigidez quase mecânica, travando sua evolução,
tornando-a menos nítida, quebrada, quase falada - o canto é áspero,
diferente daquele a que nos acostumamos. É difícil saber o que diz
a letra, as rimas estranhíssimas se desenvolvem fraturadas pelo
groove da banda, trazendo um vocabulário inédito à sua lírica,
mais erótico do que já foi, quase pornográfico, "(...)
colheu, esticou, encolheu, matou, furou, f..., até ficar sem gosto.
Ganhou, reganhou, bateu, levou, mamãe, perdeu, perdeu (...)".
O
encontro de Caetano com a nova geração de artistas e este novo
comportamento em relação à música brasileira, acabou por
encontrar e recuperar a carreira de Gal Costa. Gal há muito tempo
fora dos estúdios e que havia se transformado numa intérprete
burocrática de clássicos da MPB volta a ser a voz ideal para as
experimentações de Caetano. Em Recanto (2011), disco mais recente
da cantora produzido por ele e Moreno Veloso, Caetano se aprofunda
ainda mais no trabalho dentro do estúdio. Apoiado quase totalmente
sobre bases eletrônicas, em sua maioria programadas por Kassin
(músico e produtor), Caetano compôs canções duras, impenetráveis,
de letras um tanto desagradáveis e que modificaram o canto de Gal,
tornando-o menos exuberante, de registro mais baixo, com notas graves
desconhecidas até então. Tão belo quanto já foi. De uma beleza
surgida de elementos comumente não reconhecidos como belo. Do tipo
que Caetano sempre perseguiu e que voltou a aparecer em seus
trabalhos recentes.
Se a
canção vive mesmo uma crise e não tem a mesma relevância na
transformação cultural do nosso país, é porque vivemos um tempo
diferente, o que envolve questões que vão muito além do modo como
nos relacionamos com ela. A pergunta pertinente, agora, é se ainda
precisamos de canções. Chico e Caetano seguem ligados por suas
diferenças, mas principalmente pela estreita relação que mantêm
com a canção brasileira. Chico, acreditando ainda numa renovação
através da composição. Caetano, voltando a se alinhar com o
presente atrás dessa renovação. Talvez seja justamente pelo
comportamento inalterado destes dois grandes artistas que ela ainda
demonstre imensa vitalidade. O tempo, afinal, para Chico e Caetano,
parece no fundo ser o mesmo.
*ROMULO
FRÓES É CANTOR E COMPOSITOR